As sem panatufas

Ainda estamos aprendendo que ser mãe, ser mulher, não equivale a uma posição servil e sacrificial. Pode – e deve – ser compartilhado
com homens, com familiares, com escolas, creches e amigos, pode ser mais próximo da felicidade do que da tristeza.

O marido chegava em casa sentindo-se exausto. As pantufas o esperavam em frente ao sofá. Sua esposa havia se empenhado o dia todo para que esse momento fosse perfeito: o toque de recolher silenciava as crianças, a comida pronta e fumegante chegava à mesa com precisão suíça. A conversa devia ser amena, preocupações tinham que aguardar o momento certo para não exasperá-lo com miudezas domésticas. Ela se desesperava quando precisa comunicar-lhe problemas, confusões do filho na escola, um conserto que vai custar caro. Sua função primordial era zelar pelo seu repouso e bem estar.
Mas e ela, a esposa e mãe, que também trabalhou o dia todo equilibrando pratos no ar para que a família e o orçamento funcionassem, quando é que descansava? Donas de casa podiam até ter algum tempo ocioso, mas não era considerado de descanso, porque a ninguém ocorria que elas estivessem cansadas, afinal, “não trabalhavam”.
Faz décadas que essa cena familiar desapareceu da maioria das casas, o feminismo e a democracia familiar derrubaram o senhor e seu castelo. Hoje os chinelos não esperam por nenhum de nós. À noite não ocorre a pais e mães calar seus filhos, pois é hora do banho, de preparar mochilas. Quando dá, costuma ser a hora em que se conversa e brinca, num encontro marcado pela saudade e denso de culpa. No lugar do pai reverenciado e da mãe gueixa, a avalanche de tarefas e preocupações, cada dia mais equânimes para ambos. As questões domésticas espreitam o dia todo a volta do casal exausto e caem sobre eles no momento em que abrem a porta.
Porém, se bem não há mais tanta concordância para esses papéis sociais fixos, nós mulheres ainda carregamos muito das antigas donas de casa em nosso interior. Sempre alertas, nunca descansamos, a culpa nunca dorme. As diversas formas de comunicação virtual pioraram tudo, nesse sentido, eliminaram as barreiras entre dentro e fora de casa, dificultam a intimidade e instauraram o dia sem fim. Não há refúgio, toca, retiro.
Para nossos avôs patriarcas, o direito ao repouso era consequência da satisfação do dever cumprido. A submissão dos outros membros da família que transmitiam tal seriedade ao seu bem estar era como uma condecoração diária, um reconhecimento silencioso dos seus méritos. Ao chegar em casa era recebido como herói, presidente, general, mesmo que no trabalho nunca tivesse passado de peão.
Hoje ficamos dia e noite tentando acertar, numa jornada acompanhada de cruéis autocríticas, saudosos de parâmetros. Mas não nos cabem saudosismos daquelas famílias rígidas e injustas. Sobre o descanso que nós mulheres garantíamos aos patriarcas repousavam supostas certezas, era uma segurança presumida, ao preço da vida sem trégua. Foi só o (péssimo) costume que nos ensinou a confundir hierarquias rígidas, valores religiosos repressores e preconceitos com algum tipo de paz interior.
Nosso castelo não repousa mais em terra firme, assentado sobre essas pedras fundamentais, que eram boas mesmo para construir muralhas. Agora teremos que aprender a amarrar as redes e calçar os chinelos em nossas ilhas flutuantes de incerteza. Que podem ser lindas.

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