Calendário emocional

Sem ter consciência, somos tocados pelo aniversário de eventos ou rotinas, dos quais sequer sabíamos que lembrávamos.

Sabe aquele relógio que há dentro do celular e dos computadores, que mesmo que o aparelho esteja desligado mantêm o horário e a agenda atualizados? Nosso inconsciente é igual. Ele tem um calendário infalível, que faz com que tenhamos sensações ou pensamentos “comemorativos” de datas que sequer sabíamos que lembrávamos.

Quando somos tomados por uma tristeza incompreensível, um desânimo fora de sentido, um choro estranho, uma brabeza despropositada, enfim, algo aparentemente fora de lugar, talvez seja o tal “calendário emocional”. Algo pode estar sendo evocado nessa data. Sem ter consciência, fazemos o luto de aniversários de morte, de separação, da saída de um emprego, da partida de um filho, de um aborto ou qualquer outro evento significativo, duro ou doído. Todas as datas estão registradas em nosso relógio interno. Para fazer você acreditar nisso, vou contar a história, que aconteceu com uma paciente, que foi surpreendente até para mim, mesmo depois de décadas de trabalho como psicanalista.

Ela acordava todos os dias às três da manhã, depois demorava para dormir. Olhar o relógio e confirmar a infalibilidade do despertador interno só piorava as coisas. A sensação era de estar sendo vítima de um complô. Havia anos que quebrávamos a cabeça tentando entender o porquê dessa persistente repetição.

Sua vida mudou e isso passou. Andávamos esquecidas do enigma, quando ela se pôs a falar sobre um período muito solitário e difícil em que, a trabalho, vivera na Coréia. Foi lá que essa maldição das três da manhã começou e, nas noites insones, costumava pensar que aqui eram três horas da tarde. Dessa vez, ao contar a história lembrou que durante sua infância, o pai, que era viajante e passava a semana fora, partia sempre aos domingos às três da tarde. Na sua ausência, minha paciente ficava à mercê da mãe, cuja agressividade se expressava principalmente com ela. A filha sabia que a saída do pai era o começo de uma jornada semanal de gritos e castigos.

Muitos anos depois, soube-se que esse homem tinha duas famílias e, mesmo sem ter consciência disso, a filha intuía que sua partida era muito mais significativa do que se fosse apenas trabalhar. O hábito de despertar às três da madrugada, sentindo-se abandonada, como ocorria naquele lugar estrangeiro de fuso horário invertido, era um reencontro com a desolação que chegava quando ele partia.

Essa história lembra a força das moções internas que governam nossa vida. Elas serão tanto mais persistentes quanto menos tivermos acesso a seu significado. Podemos combater uma insônia como essa, por exemplo, usando uma medicação ou qualquer outro recurso. Mas não custa ir um pouco mais a fundo e descobrir o sentido oculto desses acontecimentos psíquicos, aparentemente bizarros. Decifrá-los possibilita que nos maravilhemos frente à eficácia da máquina psíquica que nos move. Sua precisão pode até ser assustadora, mas a familiaridade com sua lógica maluca possibilita que certas maldições deixem de nos assombrar.

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