Caminhantes noturnos

Quando ficamos grandes os monstros de debaixo da cama mudam-se para dentro de nossas cabeças e ainda dão medo.É bom lembrar dos antigos medos pra acolher com empatia os pequenos caminhantes noturnos apavorados.

Por que as crianças vão para a cama dos pais e eles não conseguem tirá-las de lá? Essa pergunta é repetida à exaustão, inclusive por casais envergonhados desse pecado. Entre as explicações, há uma que pode lhes aliviar a culpa: à noite todos sentimos medo e os pais se identificam com a ansiedade demonstrada pelos seus pequenos.
Nunca esqueci dos terrores noturnos que vivi na infância, das artimanhas tentado acordar meus pais, desde choros propositalmente audíveis, percussões na parede, até visitas noturnas à sua porta, onde nem sempre tinha coragem de bater. Houve uma fase em que tinha pânico de um calendário que ficava no corredor visível do meu quarto. Brinde de uma loja de tintas, sua imagem abstrata mostrava somente cores misturadas formando belos (de dia) conjuntos. Naquela mancha colorida, mal iluminada pela luz da rua, eu projetava faces, olhos, narizes. Meus monstros tinham caras humanas. Paralisada pelo que enxergava naquele borrão, eu mal ousava colocar um dedinho para fora das cobertas. Além do mais havia o terrível e enigmático espaço embaixo da cama. Imagine a coragem necessária para descer e mover-se até o quarto dos pais pedindo socorro.
A cama de uma criança apavorada é como um barquinho rodeado de tubarões. Alguns desses pequenos marujos ainda dão-se ao trabalho de lançar-se às trevas levando consigo seu brinquedo preferido. Partir e deixar para trás seu urso de estimação seria uma covardia, além do que ele é um companheiro imprescindível na travessia. Levei um bocado de tempo até conseguir dizer à minha mãe que tinha medo do calendário, que foi imediatamente removido. Obviamente para ser substituído por outro abrigo de monstros: como um cabideiro, ou a porta entreaberta de um armário.
Os pais acodem aos filhos aterrorizados em seus quartos ou acolhem os visitantes noturnos em suas camas porque lembram disso. É duro ser rigoroso com quem está em pânico. Some-se a isso que para os pequenos, assim como ocorre até para os adultos quando estão assustados, é difícil diferenciar entre o que se sonhou ou pensou e a realidade
A noite não é fácil para ninguém, em época alguma da vida. É claro que dormir pode e deve ser repousante. Só que por vezes, frequentes para alguns, raras para outros, mas conhecidas por todos, os olhos insistem em encontrar seus monstros na escuridão. Essas criaturas vivem de tocaia, se convidadas pela imaginação, se lançarão sobre nós.
Depois que crescemos já deu para entender que essas coisas são imaginação e a noite uma tela em que se projetam nossos fantasmas. É como no cinema e no teatro: a luz se apaga para que a fantasia se acenda. Há noites que são uma batalha contra aquelas ideias que gritam em silêncio, do tipo que se mastiga sem conseguir engolir. Elas são os monstros favoritos dos crescidos.
Acredito que as tantas vezes em que não me acudiram forjaram a pouca coragem que tenho. Por outro lado, os aconchegos que recebi ensinaram-me a confiar, a continuar procurando-o nos braços de quem aprendi a amar.
Aliás, por que quando somos pequenos e assustados temos que dormir sozinhos e depois de grandes e fortes podemos partilhar o leito com alguém? Pensando bem essa é uma das maiores injustiças da humanidade.

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