CRASH – Seis Personagens em Busca do Gozo

Sobre o filme Crash de Cronenberg

Se você assistiu Crash por inteiro e resistiu ao impulso de partir indignado, saiba que você tem alguma sabedoria sobre a alma humana. Você tem este conhecimento cuja fonte de águas amargas nos faz sábios: a familiaridade com as mais insuportáveis fantasias e os mais ásperos pensamentos que invariavelmente constituem nosso âmago.

Diferenciamo-nos uns dos outros não necessariamente porque uns são mais maus ou sujos, somos todos monstruosos por dentro, a diferença está em como lidamos com isso. Como dizia Caetano, de perto ninguém é normal. Decididamente não é um filme para todos. Se você foi um dos que levantou da cadeira ou odiou o filme, não fique triste, ele é pesado mesmo. Assemelha-se a um pesadelo arrastado. O próprio diretor, Cronenberg, levou seis meses para ler o livro homônimo.

As cenas que vimos em Crash, são tão tocantes quanto absurdas e improváveis. No entanto aí está o filme dando o que falar à imprensa de todo o mundo, por quê? Se é tão inverossímil, tão distante da realidade por que mexe conosco? Talvez seja inquietante justamente por tratar de um tema extremamente íntimo mas do qual nada queremos saber: as fantasias que comandam nosso gozo.

Seria completamente inútil ficarmos tratando da verossimilhança dos personagens, embora existam muitos seres humanos dispostos a viver para o culto de suas fantasias sexuais tornando-se tão excêntricos quanto os do filme. Eles parecem de fato improváveis, mas os outros, ditos “normais”, também dedicam boa parte de suas energias psíquicas às fantasias. Para escândalo dos pragmáticos essas mesmas fantasias que nos acometem, que nos habitam tão sem cerimônia, não servem para nada de útil, servem para nos fazer gozar. No filme parece que navegamos em um universo totalmente tomado pelo erotismo dos acidentes e os diálogos sobre a busca do gozo sexual. O resto de suas vidas torna-se totalmente sem importância. Procure uma mísera criança ao longo de todo o filme. Você não encontrará nem por acaso, nem sequer num acidente. O filme trata de um grupo dedicado ao presente da busca do gozo, não há passado, não há futuro, não há ascendentes nem descendentes, todos os personagens são mais ou menos da mesma geração.

No argumento do filme, o cineasta James Ballard, casado com uma mulher tão sensual como incapaz de gozar, enfrenta ele próprio uma dificuldade de levar a bom termo o ato sexual, falta o grand finale. Distraído ao volante, causa um acidente de automóvel, fica com uma perna muito ferida. O casal do outro automóvel tem um destino mais trágico, o homem morre e a mulher sai lesionada. Pouco tempo depois, no reencontro com os carros destroçados, os sobreviventes se vêem novamente e iniciam um vínculo erótico. Com esta mulher Ballard finalmente goza.

A partir disso Ballard é introduzido por essa nova parceira numa comunidade de sobreviventes. O filme passa a girar em torno dessa comunidade, dos que poderiam ter morrido num acidente mas não pereceram. Uma comunidade de costurados, protetizados, marcados na carne pelo trauma. Surge o personagem de Vaughan, um mestre em tentar fazer do trauma automobilístico algo sublime. Sua arte é reproduzir os acidentes de automóvel que mataram pessoas famosas com a maior fidelidade possível.

Assistimos a uma dramatização do acidente que matou James Dean, uma platéia de aficcionados aplaude, Vaughan orquestra, mas na prática desta arte perigosa o objetivo é que cada aficionado monte o cenário de sua própria morte. Compreendemos que muitos ali não estão por acidente, mas se acidentam por paixão pela morte. Seu gozo advém do cenário letal da morte no trânsito, cultuam aquele instante em que uma vida, principalmente de alguém importante, encontrou seu espetacular fim. O sublime é o encontro com a morte e quanto mais violento e desavisado melhor. Vivem um eterno presente, presente de condenados à morte, à espera daquele momento que parece ser sua única razão de ser: the end.

Trata-se de um culto orgiástico, passível de levar os seus devotos a territórios de prazer antes desconhecidos. A cena de derramamento de sangue e gasolina é para ser assistida de preferência ao vivo, com a mão na virilha, a língua entre os dentes e os olhos semi-cerrados. Temos então não apenas uma comunidade mórbida, temos uma comunidade de sujeitos que erotiza o instante da morte, eis o ponto que faz o impacto deste filme. O acidente faz com que sexo e morte se encontrem num choque tal, em que já não se sabe o que é pedaço dum o que é doutro, tornando-se uma massa só. Ocupemo-nos dela.

No exercício de uma fantasia sexual, há a sistemática e consciente montagem de um cenário, há uma estética da fantasia que recobre toda vida do sujeito. Se por um lado são poucos os dispostos a viver para o exercício e a montagem do cenário, como os sado-masoquistas, por exemplo, por outro lado somos todos comandados pela forma como amamos. Na prática, é difícil dizer quem orquestra, se somos diretores ou atores de nosso roteiro sexual. O fato é que os mínimos detalhes, o estilo de vestir, de morar, de olhar, respondem à revelação ou ao ocultamento do ser-para-o-sexo. Mas o que temos aqui é mais do que um filme sobre o exercício das fantasias sexuais. A diferença está entre acalentar uma fantasia e estar disposto a morrer nela. Temos aqui uma visitante, muito nossa conhecida, que tempera e transforma toda a questão do filme em algo mais impactante que o tema da fantasia sexual: a morte. Esse é o escândalo do filme: a erotização da morte.

Todos os personagens do filme são sobreviventes, os que não são, como no caso de Catherine Ballard, esposa do cineasta, visa sê-lo e consegue finalmente amar às portas da morte. A frase final, algo como: “não se preocupe, se desta vez não foi, dá próxima você conseguirá”, deixa-nos na dúvida de se tratava-se da morte ou do orgasmo. No filme não há dúvida, ambos levam ao mesmo. O gozo sexual, tema central da busca dos personagens, razão última de seu viver, é mortífero. A construção de uma fantasia sexual , a montagem de um cenário, como dizíamos, é o do último acidente, aquele ao qual não se sobrevive. Por enquanto, resta aos sobreviventes o culto das cicatrizes, das próteses, do sangue, todos os sinais que a morte deixa quando passou por perto. Mas não é só isso.

Não podemos esquecer a dimensão do amor ao estéticamente repulsivo e disforme. No filme, esta paixão se revela no hospital, onde Catherine se fascina pelos ferros que atravessavam o corpo de James e passa a observar o ponto onde o ferimento se expõe, a marca deixada pelo acidente,  isso a excita. Sinistro sem dúvida, mas aí está a força do filme, no fato de que não podemos esgotar o impacto de sua experiência nem só pelo lado sexual, nem só pelo lado letal, é um inseparável enlace. Os Quasímodos do filme são indiscutivelmente atraentes, somos desavisadamente arrastados ao culto, à vivência daquela mesma estética suicida do gozo.

Embora seja uma fantasia bastante improvável não seria impossível que acontecesse. Foram compulsões como essa e fatos ligados a neuroses traumáticas de guerra que levaram Freud ao mais impopular de seus conceitos: a pulsão de morte. Depois da primeira guerra,  as neurosas de guerra desafiavam os clínicos. Geralmente acometiam aos que sobreviveram a uma morte quase certa e saíram intactos de onde muitos morreram. Passavam a viver atormentados por suas memórias, morbidamente se apegavam ao passado e ao fato de sua sobrevivência ficando incapacitados para o presente. A pulsão de morte seria o que justificaria essa repetição compulsiva de um passado traumático. Até então, a teoria freudiana julgava o homem como guiado pelo “princípio do prazer”. Ocorre que por mais que ampliemos o conceito de prazer há coisas que nitidamente não cabem nele, compulsões, tendências incontornáveis de ficar repetindo por infinitas vezes coisas que preferiríamos esquecer ou melhor nunca ter pensado. Freud precisou admitir que também aí não temos uma lógica natural, a linguagem nos transformou nesses seres absurdos, capazes de cultuar a morte.

Há dois temas a priori chocantes, o sexo e a violência, de cuja banalização estamos tão encharcados que mal notamos quando a atriz da novela se desnuda ou quando nossos amigos Arnold, Silvester ou Bruce explodem alguém em mil pedaços. Faz parte do show e britanicamente convencionamos em não parecer demasiado impressionados. No máximo perguntamo-nos sobre os efeitos dessa quantidade absurda de cenas fortes a que as crianças são submetidas. O resultado dessa reflexão é uma mistura de estatísticas com os piores vaticínios apocalípticos sobre o futuro de uma geração criada sob a égide das imagens violentas e impudicas. O que há de chocante então neste filme que levou a tantas obstruções da censura em diversos países?

Para utilizar um exemplo histórico, não era da banalização da morte que se tratava nos espetáculos de execução, nos enforcamentos públicos a que os nossos antepassados acudiam, assim como não é por achar de somenos importância a morte em sanguinolentas explosões de corpos, que a assistimos em TVs, filmes e games. O exaustivo de sua reprodução, nosso estupor persistente em não lhe tirar os olhos de cima, depõe de um fascínio, de uma verdadeira parceria entre a subjetividade contemporânea e a morte.

Na Argentina uma associação de vítimas de acidentes do trânsito tentou vetar o filme. Tomaram como um escárnio às vítimas. É um argumento respeitável, mas acreditamos que o efeito  é o reverso, talvez o filme seja mais uma denúncia do absurdo dos riscos do nosso amado meio de transporte. Afinal, poderíamos pensar por que as campanhas pela diminuição dos acidentes não tem o efeito esperado. Talvez elas sejam tão ingênuas como as propagandas anti-fumo, que tem como mote principal agitar o espantalho da morte quando muitos fumam justamente porque mata. Quem garante que o filme não nos aponta os recônditos efeitos nefastos da nossa paixão pelo automóvel e seu preço? Se perguntarmos: qual é o papel da sexualidade nos acidentes de carro, pode soar estranho, mas se perguntarmos qual é o papel do álcool já sabemos. Bem, não se trata no alcoolismo de uma modalidade de gozo? É só desdobrar: qual é o papel do gozo nos acidentes de carro?

Os comentários sobre o filme inflacionaram o significado do automóvel enquanto fetiche. Não é um filme sobre a máquina, ela é um coadjuvante. O automóvel é usado por ser uma das fontes de morte mais absurdas e democráticas do nosso tempo. Dizem que no fim do século passado os homens tinham um grave problema de locomoção. Veio o diabo e se propos a resolver o problema, desde que fosse pago com uma pequena cota em almas anuais a um juro módico. O homem topou e então veio o automóvel, agora resta pagar. Se não é boa como piada, pode bem ser considerado como o mito fundador do automóvel. Ele sempre esteve ligado a desastres e mortes, mais recentemente é um dos vilões ecológicos. Mas nada disso o tirou do centro de um culto de suas formas e potência. Ele é uma das estrelas do nosso individualismo contemporâneo e como o espírito do individualismo, está disposto a atropelar o que vier pela frente.

Proprietários e cultuadores das belezas dessa máquina, de cuja indiscutível utilidade já não podemos prescindir, sabem que quanto mais potente o carro, mais velozes podemos ser, quanto mais velozes mais potentes nos sentimos. Quando a embriaguez da velocidade nos toma, atingimos a comunhão letal com a potência da máquina. Furiosos, praguejantes, ultrapassamos a todo aquele que obstrua nosso caminho neste momento. Mesmo quando trafegamos a 50 quilômetros por hora nas cidades com um carro cujo velocímetro mostra a possibilidade dos 250, sentimo-nos com a possibilidade, com a investidura da potência.

Parece estranho, que de onde advém algo tão grandioso, origine-se também o fim, a ferida, não é aí que deveríamos encontrar a felicidade?. Se é justamente do lugar  da potência que advém o ônus necessário da morte ou da cicatriz, sabemos que não podemos viver a plenitude sem esbarrar em sua inevitável antípoda: a fraqueza, a falha, a morte ou em outras palavras, aquilo que os analistas chamam de castração.

O livro e o filme são, nas críticas que se tem feito, classificados como ficção científica. Este é um gênero sem contornos definidos em que cabe tanta coisa, que não haveria problema em incluir Crash. Porém achamos melhor não incluir. Ficção sim, mas bem pouco científica por sorte. É engraçado como ficam classificadas como ficção científica obras com o espírito tão longe da ciência. A ciência é otimista, do futuro espera o melhor. Na ficção dita científica geralmente espreita o pior, espera-nos nada menos que a barbárie. O fato é que se a idéia do autor era apontar ou dar ênfase na suposta desumanização que o estreitamento dos laços com a máquina produz, fez um belo filme mas errou o pulo. A máquina no filme é um instrumento, uma vestimenta ritual, e não um protagonista do fantasma sexual que os unia. Só essa superestimarão do automóvel poderia justificar a classificação de ficção científica.

Não foram poucas as críticas que tomaram a questão da identificação do homem com o automóvel como o ponto central do filme, parece-nos que isso desconsidera toda a trama. É verdade que nos sustentamos numa rede de imagens composta por nossos semelhantes para formar a nossa, somos o que vemos refletido nos outros, temos bem menos essência do que gostaríamos. Decorrência disso, que uma das preocupações modernas seja a de que os objetos venham a substituir nossos semelhantes na função de espelho. Boa parte da ficção científica usa dessa idéia: a técnica progride e a relação entre os homens deteriora. A verdade é que até agora ficamos mais no susto e na espera de tal acontecimento do que de fato tenhamos tropeçado com os frutos dessa denuncia. Se dependuramos em nossos seres uma série de símbolos daquilo que julgamos que melhor possa nos representar, ainda é para o olhar de alguém que o fazemos.

É evidente que esperamos que de algum lugar a libertação virá. É uma fantasia muito cara ao homem a da auto-suficiência. A droga, em sua forma terminal e letal, talvez tenha sido a aproximação mais genuína a que acessamos para viver prescindindo das relações humanas. Da máquina seja ela qual for, imaginada conforme a tecnologia de ponta de cada época, fantasiamos este tipo de suficiência, que venha de forma clean dominar o mundo e limpar toda esta nojenta imprecisão e interdependência humana.

“2001, uma odisséia no espaço”, brindou-nos com a fôrma na qual o cinema molda a vinda desta redentora. Em nosso caso, porém, diferente do computador espertinho do filme de Kubrik, o carro não assume nada. Miserável ferramenta, inclementemente destruída a serviço das paixões humanas, o carro de Cronemberg é um adereço imprescindível daqueles homens, mas não parece em condições de adotá-los. Na fantasia clássica da ficção científica, o caráter letal advindo da dominação pela máquina, talvez advenha da contrapartida desta fantasia, algo como, saiba que o preço da auto-suficiência é a morte psíquica, se você não existe para mais ninguém, você não existe mais…

O mortífero com o qual Crash nos defronta, insistimos, não advém de uma máquina que assumiria papéis reservados às relações humanas, advém de um assunto intrinsecamente humano: até onde pode se ir dois querendo tornando-se um. Até o fim. A transformação de uma cena primária em terminal.

Crash foi acusado de ser veladamente um filme pornográfico. Não é, não encontramos ainda alguém que se atrevesse a chamá-lo de erótico. O filme pornográfico, oferece um catálogo fixo e esperado de fantasias prèt-a-porter, ali nós sabemos como vai ser, como vai acabar, é um bizarro domesticado. Quem retira um filme pornográfico pede carona numa fantasia para poder gozar, quem poderá fazer o mesmo com Crash?

Fazer e dizer coisas inquietantes, capazes de fazer pensar os seus contemporâneos, levá-los a algum território antes não freqüentado, parece ser um dos requisitos da arte. Tentativas sempre as houve e sempre as haverá, o problema é que nem sempre os contemporâneos se comportam como o candidato a artista deseja, muitas vezes o gênio incompreendido acusa seus contemporâneos de insensíveis e burros. Porém a arte, parece-nos, está justamente aí: em saber o ponto de sensibilidade do próximo e pisar justamente nele.

Se o gênio tem algo de avant-garde, o é porque está a revelar uma porção do presente que não estamos dispostos a reconhecer. Dizemos que ele é avançado em relação àquilo que ainda está por ser pensado. Por hora um estupor, uma sensação de estranheza e é tudo…Resulta então que o genial está relacionado com este complicado jogo de se deixar tocar, essa tênue fronteira entre o suportável e o insuportável, entre o fascínio e o nojo.

Tudo isto para dizer que Crash, embora não possa ser qualificado de genial, não está tão longe desses atributos. É um filme que veio para ficar. Cronemberg depois de inúmeras e escabrosas tentativas, encontrou o ponto onde a arte torna-se vida e a vida torna-se ficção.

Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, com o título “Uma visitante muito conhecida”, em 15 de fevereiro de 1997.

Publicado no Correio da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Psicanálise e Cinema – Número 48, julho 1997

15/02/97 |
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