Crenças e ilusões do fim do século XX

Reflexões sobre o mal estar contemporâneo

Curiosamente esse fim de século concebe-se como tendo deixado todas as ilusões para trás. Depois de séculos de religiões e superstições o homem estaria percebendo o mundo sem máscaras, assim como com as ideologias e utopias saindo de cena estaríamos mais perto de uma realidade última. 

Gostamos de nos representar numa mistura de cinismo com descrença como a marca que nos faz mais sábios do que nossos antepassados. Nós podemos não saber muito bem para onde vamos, mas pelo menos perceberíamos melhor o que somos. Seríamos sem grandes esperanças mas pelo menos não estaríamos presos a ilusões. Será?

Acredito que estamos comemorando nossa pretensa liberdade antes do tempo. Se é certo que o século enterrou velhas crenças não é tão evidente que criou outras. Vamos entrar o século XXI aprisionados a várias ilusões, miragens e bobagens nascidas e gestadas de nós mesmos.

Mas vamos a algumas delas.

O culto à velocidade

Foi o século XX que deu valor à velocidade.  Desde o futurismo italiano, que aliou a velocidade aos ideais modernistas estamos com pressa. Hoje o certo é que tudo seja despachado e rápido, basta de moleza, corra! Tempo de espera, tempo para pensar, não é atributo que numa pessoa decidida possa ser tolerado. É necessário fazer rápido, consumir rápido e ir atrás de outra coisa pois não há tempo para tudo.

Com a perda da transcendência e a certeza de que vida é só esta, o homem começou a correr atrás do tempo. Acredita que a vida é curta e colocou o pé no acelerador. Há um culto à velocidade, às máquinas velozes, aos automóveis, aos aviões, aos computadores que encarnam os ideais da modernidade também por serem rápidos.

Como se não bastasse inventou-se o fast food, nem na mesa nos permitimos um tempo maior. O campo dos prazeres também foi invadido pela urgência e pela mecânica fabril. Esteja correndo e ninguém duvidará de que você é ocupado, e portanto, útil e produtivo.

É no trânsito que colhemos as piores frutos dessa crença. Um jovem ao volante quando dirige acima do razoável está apenas tentando ser moderno como lhe é pedido o tempo todo. Nossa estradas estão cheias de apressados artificiais  que quanto menos rumo tem maior a pressa. No altar desse deus sádico do espaço/tempo sacrificamos muitas vidas, mas parece que nada apazigua sua voracidade.

E convenhamos, qualquer clínico sabe o quanto a pressa é uma das máscaras da angústia, vamos ver quanto tempo ainda levaremos para nos dar conta disso.

 

A juventude como um valor

O cidadão deste fim de século está sempre na idade errada. Vive a infância como um pequeno adulto, cheio de compromissos e direitos. Como é a crença que alí se forma todo o caráter  todos os olhares estarão atentos. Chegada a adolescência e o indivíduo já estaria no seu auge, no tempo de aproveitar a vida, claro que sem uma sabedoria para dar conta disso. Terminada a adolescência surge o adulto como um fracasso da adolescência. Aliás, quando ela termina, pois todo adulto contemporâneo parece que tem uma conta com a adolescência que não foi de todo gozada.
E a terceira idade, que já foi a fonte da sabedoria hoje é descartável, eles já não tem nada a nos dizer, estão obsoletos. Ou seja o carro está na frente dois bois, a sabedoria estaria na frente, na juventude, não mais na vivência. Po isso tantos pais não educam seus filhos, acham que nada tem a acrescentar. Invertemos a sociedade tradicional onde a sabedoria era a reserva moral dos experientes.

A ciranda começa assim: as crianças tentando chegar na adolecência, os adolescentes tentando gozar uma vida sem estarem preparados e prolongando esse período ad infinito. Os adultos com saudades da juventude mal vivida e com um medo de envelhecer. Enfim, gastamos muita energia tantando ser jovens. Juventude é um valor também porque significa todas as escolhas possíveis, potencialmente o sujeito poderia ser tudo, escolher é perder. A aprendizagem, poda, corta asas, isto hoje não é elegante, nossas palavras de ordem são a potência e a liberdade. A vida vivida ensina da fragilidade e dos empecilhos, amamos a juventude que os ignora, celebrizamos a idade daquele que a vida ainda não domesticou.

Quando é que vamos viver a vida na idade em que estamos? Quando pararmos de crer que existe uma idade melhor do que a outra, e não vai ser por esses dias, pois não achamos a fonte da eterna juventude mas buscamos, de todos os modos, ser eternamente jovens.

O mundo da propaganda

Ela está em todo lugar, é vendida como uma simpática aliada que faz com que haja TV e rádio funcionando “grátis”.  É um discurso particular, criou uma profissão que aluga cérebros para tentar fazer com que outros consumam não o melhor produto, mas o de rótulo mais enganador. Esses profissionais são cotados como os gênios modernos por poderem antecipar e moldar o desejo alheio.

Cultivamos sem crítica um discurso que incrementa a hipocrisia, todos sabem que existe uma mensagem “falsa”, que ninguém anuncia para falar dos defeitos. É incrível a tolerância que temos com essa poluição da informação. É a propria linguagem da ilusão institucionalizada. Qual é o efeito de consumir um mundo de propaganda tanto tempo? Qual o efeito de escutar todo o tempo que existem objetos que podem nos satisfazer?

A felicidade ditada pela propaganda é um mundo de objetos que encaixariam em nosso vazio. A ilusão é que o shopping pode fornecer a felicidade prèt-a-porter e que existiriam objetos que nos supririam sem a mediação com nossos semelhantes.

É uma praga do século XX, quando é que vamos ser um pouco mais críticos? Recém começam-se a por limites em seu poder. Conseguimos, não sem esforço, com que seja proibido aliar cancerígenos ao esporte e à boa vida.
Toleramos como um “pequeno” mal necessário, será mesmo? 

 

A idolatria do corpo

O corpo humano saiu das representações artísticas, talvez por que hoje o espaço da arte esteja nele mesmo. Os modelos de perfeição do corpo nunca foram tão exigentes. Quanto mais deuses de revista, mais exigência para cada um, com parâmetros tão altos tornamos-nos uma multidão de feios.

É pecado ser feio, é pecado ser gordo, é a época da perfeição. Um belo corpo é um passaporte para ser integrado, mas esculpir um corpo não é fácil. Caso a natureza não tenha ajudado, hoje temos as academias, as dietas e os cirurgiões mestres do silicone. Os auto-flageradores medievais ficariam com inveja de tão obstinada dedicação, ela ultrapassa a semana santa e os dias sagrados, ela é todos os dias sem domingos e feriados. 

Tenho muitas dúvidas sobre um acréscimo de erotismo que tal perfeição provocaria, parece mais um corpo para vitrine, um corpo para olhar, para invejar. Um corpo que pede adoração e não se entrega.

O olhar que comanda a cena de um corpo desses é de uma crueldade que não desejo aos meus inimigos. Quanto menos alguém se sustenta subjetivamente em valores, tanto mais vai precisar de uma imagem para alicerçar-se e vai ser aprisionado de um olhar externo que não dá tréguas.

O modelo físico, cinzelado pelos aparelhos e bisturis, pode parecer mais fácil de seguir do que um modelo subjetivo. O mandato de parecer-se com um deus, à primeira vista, deveria ser mais fácil de seguir do que tentar ser conforme seus desígnios. Afinal, já que se trata da aparência, o grilhão social pesaria sobre o que é externo, então internamente teríamos liberdade para ser o que quiséssemos. Falso. O hábito faz o monje e parecer perfeito significa tentar sê-lo.

Assistimos a uma vida tomada pela busca do corpo belo e imortal, sarado de todos os males que assolaram a humanidade. O corpo perfeito, de braços dados com as cobranças da ciência, exibem o pior da inclemência dos ideais de uma época sobre as pobres almas.

Interessante, tantas exigências nos rituais da sagrada manutenção do organismo, numa época que se crê tão profana e libertária. O implacável deus da saúde e da beleza não perdoa. Feios, fumantes, doentes e obesos arderão no inferno, não no inferno mesmo, mas o de cada dia de sua vida.

A busca da felicidade

Nada contra a felicidade, afinal quem poderia ser? A questão é o lugar que ela ocupa em nosso horizonte. A busca da felicidade tornou-se uma obsessão contemporânea. A felicidade é concebida como um bem pessoal, completamente descolada do contexto em que se vive, e que pode ser obtida individualmente.

Quem a experimenta nunca aprende a fugacidade de sua natureza e pensa poder produzi-la artificialmente, sem esforço, e sem estar engajada numa empreitada do mundo real. A toxicomania (embora não vamos reduzi-la a essa leitura) é o único exemplo logrado, embora de curtíssimo alcance, duma felicidade alcançada diretamente. A drogadição contemporânea deve muito a essa ética em que a obra de uma vida seria gozar e nós sabemos o preço que pagamos por isso.

A depressão é o mal do fim do século justamente por que a felicidade seria nosso bem supremo, estar para baixo é tão mal tolerado por que rompe com o ideal. Como se não bastasse as vezes estar triste agora todos nos vem dizer que isso é errado.

Qualquer olhar, mesmo que otimista, sobre a sociedade humana, a fragilidade do homem atual e os laços débeis que o unem aos seus semelhantes pensaria em ser mais cauteloso na expectativa de ser feliz. Mas não é assim que nos comportamos, exigimos-nos ser felizes a maior parte do tempo e não aceitamos nada menos do que isso.

Nossos antepassados se contentariam apenas com ser menos infelizes, eles não acreditavam que a vida fosse a busca da felicidade, a felicidade seria um lucro a mais para quem faz as coisas certas. Caso a felicidade não viesse, azar, ser infeliz é difícil, mas a vida era assim para a maioria. Não se tratava de uma maior resignação sobre o pouco que seria a nossa cota de felicidade e sim que entendiam que há uma dor por existir que é inevitável, que o próprio do humano é ser limitado. A tristeza era dura, mas fazia parte da vida e não era encarado como um problema de fracasso pessoal.
A questão é que a felicidade é um  subproduto, e aliás é assim que a felicidade sempre se mostra a nós.  Aparece quando não a procuramos e sim como efeito paralelo, não necessário e as vezes não esperado, de um outro objetivo. Não a dobramos, ela continua caprichosa, e nos seduzindo de que possa ser um fim em si mesmo, e os trouxas aqui atrás.

O pensamento burocrático

O pensamento crítico está em baixa. Somos dominados por uma forma de pensar burocrática que desliga os meios dos fins. Hannah Arendt se perguntava se em outro século a máquina de destruição nazista funcionaria. A resposta é difícil, mas ela apontava que só seria possível com homens que se consideram como parte de uma engrenagem em que as peças não precisam pensar.

O que é extraordinário é que nem nos damos conta de como os sistemas de pensar dominantes são primários, somos entupidos de informações mas quase ninguém se ocupa em nos ensinar a pensar. A internet é apontada como solução, ela é a totalidade das informações aliada à ausência de formação, nada mais contemporâneo pois confundimos o tempo todo informação com formação. Formação demanda tempo e um outro mais sábio como guia, como o ideal é fazer-se por si mesmo, ser autodidata, fica cada vez mais difícil formar-se.

É interessante que no final do século a ecologia, a valorização da natureza, possa ser uma possíbilidade de preencher o vazio de nosso espírito. Somos neoromânticos. Que civilização é essa que tem que apelar para valores naturais? É mais fácil encontrar pessoas que estejam dispostas a salvar as baleias do que uma cultura humana em extinção. Tente arrecadar dinheiro para salvar uma língua indígena e para salvar os ursos pandas. Aposto que dá pandas de goleada no saldo final. São tempos de um anti-humanismo.

Como o progresso hoje é medido pelas conquistas materiais o campo moral não é visto como regressivo. O evolucionismo é uma idéia que nos faz bem, se assim pensamos só vamos para frente. Somos melhores que nossos antepassados só por que o tempo passou, não precisamos nos comparar a nada.

A ilusão de autonomia

O individualismo vem crescendo, não começou neste século mas aqui ganhou forma definitiva. O homem moderno se concebe como autônomo, como não dependendo da série de circunstâncias que o teceu. Pensa que é uma célula capaz de sobreviver sozinho, ou pelo menos poderia ser se tivesse uma auto-estima suficiente para prescindir de todos os outros. Nunca perde a esperança de alcançar a pretensa suficiência. Cada vez mais aposta em saídas individuais do que coletivas.

Não se trata de fazer um juizo moral sobre o que seria o certo, o homem é um ser social e as suas saídas são coletivas ele é fruto, goste ou não, de seu tempo e de uma história que o precede. Ele se ilude que faz escolhas quando na verdade se encaixa no que o social dele espera. É completamente sobredeterminado em cada passo e se crê o próprio estandarte da liberdade. A única certeza dessa viagem é a solidão pois como narciso acha feio tudo que não é espelho ele não se reconhece nos que o circundam. Está aberta a temporada dos ermitões urbanos.

A busca de identidade pelo consumo

Cada vez mais nos identificamos com as bobagens que consumimos. Cada vez mais vivemos para consumir. É cidadão quem tem poder de compra. O rico nem mais é quem acumula, mas que sabe gastar de maneira a mostrar seu consumo. Sendo que ter um estilo significa saber gastar.

Já é pensamento comum a idéia de que suprimos nosso vazio de ser possuindo objetos. Mas talvez um passo a mais está sendo dado. A identidade está menos no que se faz no mercado (ou seja a profissão) do que nas maneiras de consumir. Ou seja, ao invés de obter uma identidade no fazer, agora estamos passando por tentar obter uma identidade no gozo de objetos de consumo.

Diga-me o que consomes e eu te direi quem és. Cada detalhe tem que ser pensado, não é uma tarefa fácil, nem ao menos permanente. Não adianta ter uma bela caminhonete importada, cada ano eles inventam uma “melhor”. 

 

A onipotência da ciência

É difícil fazer uma distinção entre os progressos técnicos, o aumento do campo do saber e a ideologia de quem diz que não tem ideologia. Trata-se de pensar quais os limites da ciência. Não resta dúvida dos progressos e dos benefícios que o homem tem conquistado nos últimos anos e é dessa dívida que vem o respeito de todos nós à ciência. O problema com a ciência começa quando, em cima dos justos créditos, ela nos pede uma fé cega em seus métodos. 

A ciência vende-se como quem pode dar conta de tudo, se ainda não deu é por que não deu tempo, mais alguns dias e vai chegar lá. Tem a pretensão de ter uma objetividade para além da subjetividade de quem a constrói. É uma ideologia da supressão do sujeito e isso faz de seu discípulo alguém arrogante que se vê sentado em cima da certeza e que não precisa questionar de suas intenções.

A onipotência científica é uma herança bastarda da religião que ela reprimiu. Herdeira também dos ideais iluministas a razão científica venceu a fé e no momento de costurar uma opção laica acabou incluindo uns elementos de sua derrotada. Pois bem, acabou sendo outra modalidade de fé.

De quebra nos vende a idéia de que o progresso humano é o avanço do conhecimento técnico, do acúmulo de bens materiais e da nossa possibilidade de dobrar a natureza. A idéia de progresso não viria mais do aperfeiçoamento do convívio entre humanos, mas dos gadgets tecnológicos ao nosso dispor. 

Aviso aos navegantes

Esta lista não é exaustiva, pensei apenas nas que mais me irritam. Escrevi como um convite a cada leitor desconfiar de sua rotina de pensamento e descobrir quais as paixões idiotas, enfim, os micos que carregamos involuntariamente. Pense nas que mais lhe incomodam, é um bom começo pra se livrar delas. Boa sorte e os votos que no próximo século possamos sofrer um pouco menos com nossa indigência intelectual.
Caderno de Cultura da Zero Hora 30 de dezembro de 2000

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