Criados no cativeiro

Há algo de podre no reino das famílias “normais”….

Todos sabemos que as aparências escondem muita coisa, mas tendemos a alinhar os que são convencionais com o que é certo e os desviantes com o errado. É difícil acreditar que entre os pais de família heterossexuais e religiosos, entre os esportistas saudáveis e populares, entre bons estudantes, maridos e esposas monogâmicos, funcionários e professores esforçados, boas donas de casa, gente trabalhadora e dita normal, pode haver algo de perverso, demoníaco e assustador.

O clã é um filme argentino, dirigido por Pablo Trapero, que nos confronta com esse paradoxo das aparências. Conta a história real de uma família de classe média, cinco filhos entre os quais um prestigiado jogador de rúgbi. Eles têm uma vida trivial, os mais jovens fazem temas e a mãe, professora, reúne a prole à mesa do jantar onde conversam agradavelmente. São donos de uma rotisseria, pequeno negócio de bairro, atendido pessoalmente pela família. Os pais são zelosos, o cotidiano é de uma família amorosa.

O detalhe é que Arquimedes Puccio, o pai, é um psicopata de livro. Ele trabalhava no serviço de inteligência durante a ditadura, o que na época equivalia à prática impune de sequestros e assassinatos. Com a chegada dos primeiros ventos da democracia, ficou ocioso de seu ofício de executor dos negócios escusos do governo. Foi quando ocorreu a Puccio começar a praticar sequestros, assassinatos e extorsões em benefício próprio e não teve pruridos em fazer disso um negócio familiar.

Eles eram acima de qualquer suspeita: a participação ativa dos filhos homens mais velhos, a conivência da esposa e das filhas, e a imagem respeitável permitiu que o clã dos Puccio mantivesse as vítimas em cativeiro na própria residência. Entre os companheiros de esporte do filho havia vários jovens abastados, assim como gente bem situada das relações de Arquimedes, que não aparentava nenhum constrangimento em sequestrá-los e matá-los. Aliás, a lógica perversa desse homem é aplicada tanto em relação às vítimas, quanto a seus filhos, a quem via como parte essencial de seus planos. A vida e a morte, os destinos alheios não fazem questão para um psicopata, todos estão a serviço de seus propósitos. Seus planos são fins para os quais os outros seres humanos não passam de meios, mesmo que sejam seus filhos.

Preste atenção: Arquimedes Puccio era um pai dedicado, envolvente, lógico. Foi difícil desobedecer suas determinações travestidas de amor. Além disso esse chefe de família psicopata foi, por muitos anos, legitimado pelo estado. As ditaduras funcionam com a mesma lógica perversa, por isso ele custou a acreditar que seria punido e essa prepotência foi o fim dos Puccio. Como se vê, quem tem uma lógica perversa na vida pública, não deixará de aplicá-la na intimidade. O público é também privado.

Um Comentário
  1. Beatriz Diamante permalink

    Feliz coincidência. Ía mesmo te escrever sobre filme. Assisti duas vezes e na segunda gostei mais ainda. A trilha sonora é tão impecável quanto os diálogos , principalmente quando os sons se misturam. e não sabemos identificar o que é uma coisa e outra. Assim como as cenas de sexo e violência, editadas chegam a mostrar gestos que são quase iguais.

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