Dumbo: um amor grande como um elefante

O elefantinho orelhudo é herdeiro da linhagem do Patinho Feio, dos que se sentem rejeitados, da temática dos que nascem diferentes dos rígidos padrões sociais. Eles representam a contemporânea busca de um lugar para ser, que leva o romance moderno ao conto de fadas.

O filme Dumbo é mais uma criação de Walt Disney que, se pode dizer, foi responsável por um revigoramento dos contos de fadas. Desde o lançamento de seu filme sobre a Branca de Neve (em 1936), ele foi o precursor de outra modalidade de apropriação da linguagem do conto de fadas, agora narrados em compasso com as imagens, sob forma de desenhos animados. As histórias da tradição oral, assim como aquelas obras literárias que se tornaram clássicas, como é o caso de O Patinho Feio, devem sua sobrevivência às sucessivas re-apropriações de que foram objetos. Os compiladores tradicionais, como Perrault, as adaptaram à linguagem de seu tempo. Podemos dizer que houve – e haverá – repetidos momentos de reciclagem, em que velhas narrativas se atualizam em novas linguagens. Uma história não necessariamente supera a outra, muitas vezes, podem proliferar versões ou tramas inspiradas umas nas outras. Lançado em 1941, Dumbo lembra o conto de Andersen, não o substitui nem o supera. Por isso, vamos enfocar nossa leitura nas diferenças entre essas histórias.
A história do elefante voador foi escrita pelo próprio Disney. Ele afirmou ter se inspirado na figura de um elefante que vira numa caixa de cereais. Através deste desenho animado, aproximadamente um século depois, o patinho feio e rejeitado transformou-se num bebê elefante que nasceu com gigantescas orelhas de abano. Esse defeito o tornava motivo de escárnio por parte de todos no circo em que vivia. Mas agora o filhote torto está com a sua mãe, e ambos sofrem com o seu defeito. A novidade é que a mãe moderna aceita – pelo menos tem de aceitar – o filho do jeito que venha, afinal, agora o amor materno é um valor em si.
Mesmo contando inicialmente com o amor da sua mãe, o drama de Dumbo também é de separação. Dona Jumbo, a mãe, é encarcerada após ter uma crise de fúria contra aqueles que maltratavam sua cria. O elefantinho ficou só, tendo apenas o rato Timóteo como conselheiro. Com um final feliz, a história termina provando que o defeito de Dumbo era na verdade uma virtude, pois suas enormes orelhas o transformam num elefante voador. Como o Patinho Feio, cuja aparência diferente não era um defeito, apenas uma característica das jovens aves de sua espécie, o elefantinho tinha as tais orelhas destinadas a algo maior. Ambos desconheciam suas qualidades, que carregavam consigo como um fardo, ambos se descobriram superiores aos outros, mas só depois de um bocado de sofrimento.
Até o começo da sociedade moderna, o amor materno não figurava entre os requisitos que uma mulher queria reivindicar para si. Nos primeiros momentos da emancipação feminina, era grande o desejo de desincumbir-se dos filhos e do lar, sempre que houvesse posses para isso. Libertas do pesado fardo do trabalho doméstico, as nobres emancipadas e as primeiras burguesas jogaram o bebê fora junto com a água do banho, dedicaram-se ao ócio e às tentativas de se mimetizar com os privilégios e as tarefas masculinas. Incumbiam seus bebês aos cuidados de amas-de-leite, muitas vezes fora do lar de origem, e os recebiam de volta quando já tivessem formato de gente, se tivessem sobrevivido até lá .
Na modernidade, o filho passa a ser um projeto prioritário para a mãe, mesmo antes de provar sua viabilidade. O destino dela está associado ao do filho. A sociedade incluiu o cuidado com a família entre as realizações necessárias para atingir o sucesso. Acaba valendo a máxima: diga-me como são teus filhos e eu te direi quem és. A maternidade não é uma tarefa degredada, realizada nos bastidores da sociedade, hoje ela é importante, central, digna de ocupação e preocupação.
Quando Disney criou Dumbo, essa mudança já estava consolidada. Dona Jumbo não se faz de rogada, aceita o seu filhote e briga por ele, mesmo que isso venha a arruiná-la, como é o caso. O filho vai ser sempre sentido e vivido como se fosse parte da própria mãe. Ela ficará ao seu lado no infortúnio e ele será sua extensão narcísica.
O drama do elefantinho se centra no fato de que ele se vê privado dessa proteção, quando sua mãe é encarcerada. Essa história tem seu fim quando se produz o milagre de fazer um elefante voar. A diferença entre a história do pato e do elefante está na consagração do amor materno como um grande valor. O patinho já demonstra essa valorização, pelo lado negativo, na medida em que a história frisa a rejeição egoísta da pata e o desamparo do filho. Dumbo, que tem sua mãe a seu lado, não se transforma numa bela criatura pré-existente na natureza, como o cisne, ele se revela um ser fantástico, um elefante voador. Como vemos, as mães não investem em troca de pouco…
Nesse sentido, o final do filme de Disney difere do conto de Andersen: em O Patinho Feio, a felicidade significa encontrar a tribo e ter uma existência autônoma; para Dumbo, o final feliz está em preencher as expectativas do ideal materno e ser algo grandioso. O impossível de um elefante voar aconteceu, logo as fantasias desatinadas de uma mãe dedicada podem ser alcançadas. Assumir o formato do ideal materno, no entanto, é uma proposta regressiva, é uma possibilidade de se entregar infantilmente à condição de ser objeto da mãe. Infelizmente, a experiência clínica nos revela o quanto isso pulsa forte em cada um de nós, perseguindo-nos a vida inteira.
Se na modernidade a mãe mudou, o mesmo ocorreu com a infância. O aspecto mais marcante dessa modificação é seu prolongamento. Não há mais pressa em abandonar as asas da mãe. Junto dessa prorrogação do crescimento, estão a valorização desse período da vida e as expectativas que temos dele: ser crianças por mais tempo, para que os pais também possam investir mais em tornar os filhos algo mais próximo de seu ideal. Em Dumbo, essa infância prolongada já está presente, pois ele é um herói fixado nesse período de idílio com a mãe.
E o pai de Dumbo? Não temos notícia, mas a função paterna é feita por um ratinho, o Timóteo – como nas histórias de fadas que veremos adiante, temos um pai desvalorizado, neste caso, minúsculo. A assimetria desse casal rato-elefante, no exercício das funções paterna e materna, simboliza bem o que sempre sentimos: uma mãe maior do que suportamos, e um pai sempre aquém do necessário para barrar a sua potência. Nas piadas tradicionais, o enorme elefante costuma ter medo de ratos, mostrando que tamanho não é documento. Porém, não deixa de ser ilustrativo que a mãe seja tão imensa, enquanto o personagem que poderíamos associar ao pai seja tão pequenino.
O ratinho representa um pai que surge como um conselheiro oportuno e sábio, mas só depois que o destino tira de cena a dona Jumbo, cujo amor paquidérmico ocupava todos os espaços. Timóteo cria um objeto mágico, uma peninha, que faz com que o elefantinho perca o medo de voar. Convence-o que se estiver segurando-a na tromba não cairá. Só depois, quando Dumbo já estava convencido de seu dom, Timóteo lhe revela que a história da peninha fora um pequeno truque.
Não pode haver nada mais paterno do que esse episódio, ele é similar ao que ocorre quando as crianças aprendem a andar de bicicleta: em um determinado momento, quem as está segurando deixa-as soltas, e elas seguem pedalando sozinhas, confiantes de que estão sendo amparadas. O trabalho do pai é esse auxílio no crescimento, que passa por deixar voar, mas entregando uma peninha que represente sua presença, ou, com as mãos soltas, acompanha com o olhar as primeiras pedaladas independentes. Trata-se de um apoio que saiba se ausentar na hora certa e possa ser substituído pela confiança nos passos do filho.
Quando Andersen escreveu O Patinho Feio, justamente estava se operando a valorização da infância que culminou nos dias de hoje. Porém, por alguma razão, essa história não sucumbiu. Os adultos a seguem contando, as crianças continuam escolhendo-a como algo digno de ser repetido a cada noite. Pelo jeito, ela não é apenas uma relíquia, ela fala de coisas que ainda são ativas no nosso inconsciente. Pensamos que, nesses casos, pouco importa o sexo do personagem, embora tanto o patinho quanto o elefante sejam masculinos. A condição universal e precoce de suas representações não oferece barreiras à identificação das meninas.
Ao comparar a história de Dumbo com a do Patinho Feio, podemos pensar que o conto de Andersen não se deixou substituir e é mantido vivo pelas crianças e seus pais, graças à ênfase no fato de que cada um terá de batalhar pelo seu lugar no mundo. Embora Dumbo tenha vivido sua aventura longe da proteção materna, numa jornada de crescimento, a fonte de sofrimento se situa na conjugação da hostilidade do mundo com a ausência da mãe. O Patinho Feio não esperava nada de sua mãe, que aliás se revelou uma madrasta. Mas compartilhamos com ambos uma certa dose de desamparo e de sentimento de rejeição, o que nos impulsiona na busca de um lugar ao sol.
O Patinho Feio já se descolou de seu criador, foi apropriado por todos e circula em várias versões. Sua força é tal que muitos chegam a crer que é um conto da tradição oral, o que serve para provar que as criações literárias podem ter a mesma pregnância que os contos ancestrais. Há algo de estrutura comum entre essa criação de Andersen e os contos tradicionais: o patinho não recebe um prenome, designa-se pelas características funcionais do personagem, assim como o final feliz redime e justifica o sofrimento anterior. Porém falta a tradicional revanche ou punição dos vilões. Nessa história não há um vilão específico, apenas o ambiente tem suas rusticidades, ele sofre de frio e fome. O papel de mau se reserva às aves que o discriminaram, assim como no circo, o elefantinho orelhudo foi achincalhado pelas amigas da mãe . De qualquer maneira, esses personagens que maltratam o patinho, estão longe de ser vilões do quilate de bruxas, ogros e dragões. Tampouco encontramos a quebra de alguma interdição, que geralmente faz a virada das situações nos contos de fada.
Como dizíamos antes, consideramos que O Patinho Feio faz uma ponte entre o conto de fadas tradicional e o romance moderno, já que, na trama de Andersen, a fonte do sofrimento é também interna. Esse conto já contém uma psicologia rudimentar, coisa que os personagens dos contos de fadas podem até revelar, mas o sofrimento se dará mais em função da tragédia em si e menos no discurso do personagem. A caminhada do Patinho Feio, diferentemente do percurso dos personagens clássicos de contos de fadas, é mobilizada pelo sentimento de rejeição e pela sua vontade interna. Lembremo-nos de quando ele deixa a casa da velha, onde não estava sendo propriamente maltratado, porque não se adapta à companhia dos outros animais domésticos – uns tipos bem desagradáveis – e sentia saudades de nadar na lagoa. As dificuldades externas auxiliam nas decisões de quando partir, mas o que realmente o move é o fato de não se sentir bem recebido em determinado lugar.

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