Férias, uma promessa que não se cumpre…

Depois de fazer um congresso sobre o valor do trabalho nada melhor do que um Correio sobre o valor simbólico das férias, afinal, ninguém é de ferro. E das férias o que se espera? Faz muito que a psicanálise aponta que somos governados não só pelo necessário mas pelo supérfluo. Foi nos descaminhos da vida […]

Depois de fazer um congresso sobre o valor do trabalho nada melhor do que um Correio sobre o valor simbólico das férias, afinal, ninguém é de ferro. E das férias o que se espera?

Faz muito que a psicanálise aponta que somos governados não só pelo necessário mas pelo supérfluo. Foi nos descaminhos da vida sexual, nos paradoxos do que o gozo tomava que tentamos provar o quanto nos ocupamos, ou nos orientamos pelo desperdício, por aquilo que não serve para nada. Em outras palavras somos muito mais governados pelas férias (ou pelo sonho das mesmas) do que pelo trabalho. Este período não útil povoa nossas mentes o ano inteiro.

Lacan, no Seminário sobre a Intemperança (seminário inédito do qual tenho algumas informações privilegiadas) nos fala das férias como: des vacances sont une promesse qui n’est pas tenue (férias são uma promessa que não se mantém). Settineri, que está traduzindo o dito seminário, opta por uma tradução mais livre e mais poética, fica assim: as férias são uma esperança que não se cumpre. Preciosismos a parte, o essencial salta aos olhos, para ele as férias estão fadadas ao fracasso.

Voltamos das férias, no mais das vezes, com a sensação de dever não cumprido. É bom lembrar que Lacan estava ainda com questões sobre o gozo pendentes desde o Seminário XX. Na lição seguinte ele nos revela a estrutura matêmica das férias.

Em palavras, o matema fica mais o menos assim: férias são uma sucessão finita de sábados. Já a sucessão indeterminada, desemprego, ou infinita, aposentadoria, não goza do mesmo prestígio, ou melhor, ali não se goza. Isso nos resolve um problema e cria outro, o que é o sábado? Na mesma lição ele nos indica: sábado, feriadão (que é um termo médio entre sábado e férias) e as férias são uma porção de tempo em que temos as mais altas expectativas de que com algo vamos gozar, de que finalmente ali algo vai acontecer. Nos são apontados dois gozos envolvidos, o gozo de espera das férias e o das férias propriamente ditas. De longe o primeiro seria mais satisfatório, a posta em prática do exercício do gozo esperado traria alguns revezes.

O enigma de porque a unidade mínina dessa expectativa seja o sábado fica um pouco osbcuro embora admita que se entende perfeitamente o que ele quer dizer. Talvez a questão esteja mal colocada, levamos ao pé da letra algo que Lacan não queria mais do que dar um exemplo de estrutura. Tanto faz que seja sábado ou qualquer outra coisa, o que vale é o posicionamento dos elementos em jogo. É claro que desde que seja respeitado o fato de ser um elemento de abertura para o período de gozo, poderia ser sexta de noite mas não domingo que marca o fechamento desse período.

Trata-se de um trecho temporal onde a noção da passagem do tempo é realçada, paradoxalmente quando se a perde, ou seja,  enquanto não se sabe que horas são (no caso de sair de noite) ou quantos dias das férias ainda nos resta que podemos obter o melhor das férias. É por não ter desfrutado o que se espera que as tardinhas de domingo são um pesadelo, o tempo está escorrendo e nada aconteceu, basta soar a vinheta do Fantástico para chegarmos à conclusão que o suicídio é uma saída. Isto é o que Lacan chamou de “angustia do período de fechamento do momento do não-gozado” (ou menos-gozado, em outras traduções).

É claro que a questão central é o retorno de suas teses mais antigas, e convenhamos não são nenhuma novidade, sobre o gozo e a borda. Sem ser finito o gozo não se constitui. As férias só são possíveis por que sabemos que voltaremos para o mesmo lugar. Fica mais fácil de compreender evocando a ilustração topológica: as férias ficam como o toro entrelaçado ao toro do trabalho, só lembrar que estou aplicando, na verdade Lacan usa o binômio dever-lazer.

Mais adiante ele nos deixa claro com todas as palavras que as férias raramente são um afrouxamento da demanda fálica, trata-se nestes períodos de uma sucessão de exigências que colocam a subjetividade a todo tipo de prova. O exemplo que nos dá é do valor das viagens de férias, tanto mais trabalhosas, tanto mais exóticas, tanto mais se gaste em todos os sentidos, mais valem. Dificilmente alguém que fique vendo a grama crescer vai ser considerado entre os que tiveram grandes férias. As férias são um momento em que, em quase todos os casos, precisamos gozar em dobro, o que não deixa de ser uma árdua tarefa. Em termos freudianos, as férias seriam muito mais superegóicas do que dionisíacas.

Uma questão para finalizar, esse seminário comentado permanece num lugar de controversia, Marini o expurga de sua cronologia por dizer ser apócrifo. Não é a única aliás que diz que as teses ali expostas, de um seminário inconcluso, não mais do que quatro lições, durante o tempo em que é gestada a dissolução da EFP, seriam na verdade teses de Jacques Alan Miller. Paranóias a parte, um texto se reconhece pelo seu estilo, e nele se reconhece o estilo dos últimos Seminários de Lacan.

Publicado no “Correio da APPOA”, número 65, janeiro de 1999

19/01/99 |
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