Frankenstein, Jesus e companhia

Sobre as fantasias que a clonagem desperta

Fazia tempo que um novo aporte da ciência não entrava na imaginação popular com tanta aderência e de forma tão abrupta. Já que todas as questões científicas estão sendo bem respondidas por quem compete, resta saber o motivo de tanto barulho. Por que a idéia da clonagem excita tanto a nossa imaginação?

Por que uma onda de desconfiança envolve o fato? Paira uma ambivalência, otimismo enquanto uma técnica que visa dar mais possibilidades à medicina, mas que dela parece que só esperamos o pior. As recentes manchetes de jornal são eloquentes: “Países se  mobilizam contra clone humano”, “Ovelha preocupa governos de EUA e Europa”, “Clinton proíbe verba federal para clonagem de humanos”, “Vaticano pede lei contra clone humano”. Qual é a pressa em legislar sobre o que não existe?

Ninguém, que se saiba, está fazendo experiências com clonagem humana, e se fosse o caso, por que tanta preocupação? O que de tão terrível se espera de seres humanos clonados? Se não temos experiência disso como podemos saber que vai necessariamente ser ruim?  A discussão dos prós e contras, dos riscos e seguranças da clonagem é um tema que os que os especialistas tem se pronunciado à exaustão. O veio de fantasias que esta descoberta atiça é que está sendo pouco falado. A clonagem vem tocar exatamente no calo de como é difícil não ser clones, e sim ser filho de pai e mãe, ser filho do sexo dos pais, ser resultante da incompletude de ambos.

Quando ainda não existia a ovelha Dolly para dar tintas reais à questão, já havia a possibilidade de apelar para a ficção, e esta tem sido rica em alertar sobre o mal que advém da interferência científica na reprodução. A fantasia é velha: Frankenstein, os seres da ilha do Dr. Moureau, Blade Runner, Os meninos do Brasil, e tantos outros. Todos tem um tema em comum: um homem criado pela ciência tem tudo para ser um monstro. Se não são seres monstruosos são seres robotizados a realizar o desejo de seu criador. Tudo isso como se a reprodução sexuada não tivesse produzindo monstros, e muitos de boa familia. Um pensamento pessimista muito curioso: criaríamos algo ainda pior que nós mesmos.

O resultanto da paternidade artificial da ciência parece apontar invariavelmente para seres de baixo padrão ético aliados a qualidades superiores às nossas. Brinca-se com clonar a beleza, a inteligência, ninguém sonha em reproduzir nossos piores traços. Por isso as preocupações com a questão da eugenia, todos nasceriam com a cara da modelo de plantão e a cor de pele mais valorizada. Selecionariamos seres próximos a nosso ideal de perfeição. Aparente paradoxo, a mesma morada partilhada pela perfeição e pela monstruosidade. O belo clone é perigoso como a inquieta replicante representada por Daryl Hannah em “Blade Runner”.

Três caminhos distintos e não tão independentes alimentam a imaginação popular e tecem a chave destas fantasias: o mito amazônico de prescindir dos homens; a ilusão, tão cara aos habitantes de nossos tempos narcísicos, de prescindir dos pais e a esperança de atingir alguma forma de  imortalidade.

As amazonas foram um povo de mulheres guerreiras descendentes de Ares, o deus da guerra. Sairam ao pai fundador, seu nome (em grego, “as que não tem seio”) se deve a prática da extirpação do seio direito para não prejudicar o manejo da lança e do arco. Só admitiam homens como criados para trabalhos servis. Em determinadas épocas uniam-se a estrangeiros para perpetuar a raça. Caso nascessem dessa união filhos varões eram mortos ao nascer. É tão certo que elas existiram como teria existido Ares. Trata-se de um mito da esperança feminina de prescindir dos homens.

Embora Dolly tenha nascido, ironicamente de uma glândula mamária, as amazonas se foram, mas esse anseio de desvencilhar-se dos homens segue. A clonagem viria dar fôlego a essa milenar esperança com a vantagem de não necessitar da submissão sexual aos estrangeiros e de que não haveriam desperdício de partos, afinal só nasceriam meninas. A clonagem faz o sonho amazônico ser mais radical, o adeus aos homens seria total. É certo que é um sonho, mas a república do útero cala fundo na alma histérica feminina. É um dos caminhos para o apagamento da diferença sexual. Os analistas são testemunhas de como se suspira por um mundo unissexo. Paradoxalmente são os homens que primeiro manifestaram essa fantasia ao dizer sentirem-se obsoletos como um disco de vinil.

Seria a “produção independente” a versão moderna do mito amazônico?  Hoje a mulher já se coloca não só a alternativa de ter ou não filhos, o que no passado não seria motivo de dúvidas, mas também de te-los “com ou sem pai”.  Muitas mulheres tem nutrido a fantasia de que podem dispensar um pai. Pobres iludidas, acabam fazendo um filho referido ao seu próprio pai, a um irmão, a um cunhado ou até ao professor da escolinha de futebol ou todos ao mesmo tempo. Algumas crianças são suficientemente espertas para saber que precisam de pai e mãe e, se necessário for, forjarão um lugar paterno em qualquer homem disposto a lhes ciceronear um pedaço do mundo.

As leitoras feministas já podem se tranquilizar, pois isto que é fantasiado ou realizado pela mulher, a produção de um filho sem pai, encontra a conivência de toda nossa sociedade. Queremos a supressão não do “pai” como tal, ou seja, não do homem que cumpre esse papel, mas sim da genealogia. O pai que a mãe oferece ao seu filho é uma história, é um lugar, é a herança de um nome, é a responsabilidade de cumprir uma missão no mundo previamente modelada por um ideal.

Já imaginou como seríamos felizes num mundo sem pais! Sem alguém para nos medir, sem o peso de carregar o seu nome, sem as suas manias tolas, os seus fracassos e o seu jeito ridículo. A idéia de tirar esse peso dos ombros soa muito agradável a todos, mas a idéia desse parricidio sem sangue tem curta duração, sabemos ou intuimos que somos o que somos graças aos nossos pais. Os amamos e os odiamos justamente por isso, cada um sabe o quanto deve a eles e o quanto eles foram insuficientes.

Gostemos ou não, somos originários de um encontro sexual dos nossos pais e é relevante em nossa história pessoal a particularidade desse enlace. Somos inexplicavelmente  curiosos sobre as condições do gozo dos pais. Pesa-nos quando não podemos entrever os rastros do seu sexo, pesa-nos também quando ficamos sabendo do mesmo ou o presenciamos, em resumo, é um assunto perturbador. Por que não fantasiar que tudo isso desaparecesse por inteiro como o despertar de um pesadelo? Por que diabos preocupar-se com isto se somos suficientemente espertinhos para saber que não fomos concebidos por um orgasmo e sim por uma fecundação totalmente  independente das vicissitudes da vida erótica do casal?

Em última instância, constituímos um produto híbrido, filhos biológicos da fecundação e filhos psíquicos dos gozo. As conjecturas sobre a vida erótica dos “velhos” informam-nos sobre seu desejo, sobre a forma como eles administram suas faltas, seus ideais. O simples fato de que eles se amem diz-nos que eles admitem precisar de alguém, que há lugar para mais um. Mas que lugar? Essa é a pergunta originária que ocupa análises e toma nossas  vidas. Qual é o lugar que o desejo parental nos reservou?

Assim, se admitirmos que esse assunto começa na cama dos pais e termina na razão da nossa vida, podemos entender a estranheza que pode ser alguém não concebido no amor, no ódio, no ciúme, na sofreguidão da paixão, na hipocrisia. Enfim, alguém sem qualquer um dos ingredientes do caldo de sentimentos humanos que nos compõe. Por isso invejamos secretamente o clone, ele não teria essa carga, invejamos a “liberdade” do futuro homem clonado.

Infelizmente terminamos por tropeçar em tudo aquilo que jogamos para baixo do tapete. O reverso dessa aspiração de fazer-se a sí mesmo, sem depender nem tributar nosso trajeto a ninguém, esbarra na fantasia paranóide de ser um selvagem sem lei ou um marionete. Dois extremos: o primeiro ilustrativo do temor que infunde alguém que cresça livre de dívidas simbólicas, de determinações, de pais, e o segundo denota a contrapartida, seriamos o complemento do criador, totalmente determinados por seu desejo, seres sem vontade própria. Na falta de ser fruto do amor, resultantes da equação que levou um casal às lides do sexo, supomos que tampouco seriamos capazes de desejar, de ter um caminho pessoal próprio. 

Isto é bem mais que uma fantasia. A idéia de seres sem uma referência familiar e ligados diretos a um demiurgo talvez seja um resto histórico. Os antigos potentados asiáticos usavam órfãos sem resquícios de uma história pessoal para, uma vez criados, serem usados na guarda pessoal. Estariam referidos a uma só referência paterna, o sultão, e só a ele deviam obediência. Retirados das particularidades historias familiares, a subjetivação não conhecia outro caminho que a fidelidade ao seu protetor pela dívida de te-lo tirado do nada. Quem acha que é um assunto pretérito informe-se sobre a guarda pessoal de Ceaucescu usava.. 

A questão de postergar a morte não precisa ser muito explicada, qualquer um sabe o pavor que a morte nos infunde. O anseio de imortalidade é o motor de boa parte do movimento religioso.É claro que a clonagem não dribla a morte, mas é bom lembrar que na fantasia o conhecimento joga tanto quanto a ignorância. Boa parte da confusão pode ser tributada a própia ciência que tem inflacionado o papel da singularidade genética em detrimento das condições históricas.

Desde  “Retrato de DorianGray”, aprendemos que ninguém quer se perpetuar aos 90 anos, viver para sempre é um anseio indissociável de faze-lo em nossa  melhor forma, aceitar a decrepitude é o mesmo que aceitar a finitude. Decorrente disso, podemos esperar a imortalidade  na herança deixada, filhos, obras, enfim, qualquer coisa que transcenda o viço do corpo.

Influenciado pelo assunto um amigo inventou o seguinte roteiro para um filme de futurismo barato para sessão das duas. Um sujeito, à medida que envelhece faz um clone de si mesmo, convence o clone que ele é a sua continuação passa-lhe um álbum de fotos e umas memórias de sua mãe e se mata. O novo sujeito faz o mesmo e tudo segue regulado britanicamente até que um dia um deles toma um porre, se apaixona por uma garota chinesa, e tem um filho. No dilema, não sabe se mata o filho, a garota, o álbum de recordações, o seu banco de células ou tudo ao mesmo tempo. Como a história é para fazer sucesso o sujeito acaba aceitando a sua morte como natural e assume o filho. Moral da história: os clones também amam. Outra moral: ter filhos é morrer um pouco. Entrar numa genealogia é também encarar a finitude.

Dois palpites: Primeiro, os clones virão. Segundo palpite, nosso amigo tem razão, os clones vão amar. Não vai ser dessa vez que teremos um homem sem falta.

Se um extra-terrestre examinasse as notícias referentes a clonagem pensaria que a humanidade chegou a um padrão ético invejável em toda galáxia. Como nos importamos com a condição de humanidade dos seres futuros! Ora, em qualquer esquina do mundo tropeçamos crianças em condições subumanas, na asia ainda é comum o infanticídio feminino, será que abandonamos o presente ou do que é mesmo que estamos falando?

Já houve um homem que mudou o curso da história e é considerado até agora um modelo de virtudes. Pelo que consta teria sido concebido sem relação sexual e feito a imagem e semelhança do pai. Então por que o medo do clone?

Texto publicado na revista Pulsional em  Março de 97

19/03/97 |
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