Heróis de ontem e hoje

Sobre o filme 300 de Esparta

Partimos duma constatação, o filme 300 é um sucesso. Parte da crítica o odiou, eu não sei o que esperavam de uma versão juvenil da batalha de Termópilas, francamente inspirada numa versão em quadrinhos de Frank Miller. Como fui munido duma expectativa rebaixada, e sabendo que a ficção e os fatos se mesclam e alimentam-se mutuamente nesses casos, me diverti bastante. Certas passagens da história, por sua força exemplar, ganham contornos míticos, e como os mitos, elas resistem às piores traduções. Afinal estamos diante dum clássico da história ocidental, o heroísmo de Leônidas e seus bravos.

É claro que o filme tem inúmeros problemas de reconstrução histórica, mas não foi a isso que ele veio, para isso existem os livros e os bons professores. E se você acha que os gregos estão mal representados é por que não reparou na imagem dos persas. Se a Império Serrano desfilasse o império Persa na Sapucaí, e Rodrigo Santoro fosse o porta estandarte duma ala gay, ele estaria mais másculo e mais persa do que no filme. Mas não é isso que importa, creio que o fato central que interessa ao diretor Zack Snyder é o heroísmo grego, e isso ele transmite satisfatoriamente.

O exagero dos fatos perpassa tudo, mas historiadores afirmam que já Heródoto havia feito um retrato hiperbólico dessa batalha. Lembrando: os gregos enfrentavam o invasor persa, os quais na época eram os donos do mundo. Para barrar o invasor os gregos armaram duas frentes, uma em terra, no desfiladeiro das Termópilas e outra no mar, uma frota que derrotaria os persas em Salamina. As forças eram assimétricas, os persas em terra e no mar eram muito superiores. O primeiro round deu empate, embora derrotados no mar, os persas conseguiram penetrar no território grego e só foram expulsos depois da batalha de Plataia. O episódio relatado no filme é a derrota heróica da primeira batalha em terra.

Quando Leônidas, rei de Esparta e comandante das forças terrestres nas Termópilas, dá-se conta que está cercado e a derrota é iminente, manda embora o grosso das tropas para poupá-las, e fica para segurar o inimigo numa missão suicida. Seus guerreiros são uma espécie de tropa de elite e, mesmo em número reduzido, causam um estrago no exército persa. Essa resistência heróica é o coração do filme.

O segredo do exército grego para vencer adversários maiores era seu treinamento militar precoce e constante, sua eficaz ciência da guerra que depois seria aperfeiçoada por Alexandre e por Roma. Mas havia algo mais para fazê-los uma máquina de guerrear: possuíam uma disposição especial de caráter, os guerreiros gregos não temiam a morte. Sabemos que uma das formas de lidar com o medo da morte é, ao invés de fugir, ir a sua direção para fitar seus olhos. Assim faziam os gregos, morrer em combate por sua pátria era considerado seu melhor destino. Haviam aprendido com Aquiles, o paradigma do herói grego, que a vida breve e gloriosa é preferível a uma vida longa e sem feitos. Seu objetivo era sair da vida para entrar na história. Um homem, no sentido grego, era aquele que não temia a morte, caso não conseguisse ficava classificado entre os escravos e as mulheres.

Marte, o deus da guerra era sempre ladeado por Fobos e Demos, respectivamente figuras que encarnavam o medo e o terror, sentimentos que nunca faltam nos campos de batalha, os gregos sabiam que quem os controlasse dentro de si venceria o embate. Numa batalha é muito difícil enfrentar homens sem medo, que não tremem nem recuam, que não são tomados de pavor quando o sangue começa a jorrar. Se a morte é certa e boa, por que alterar-se? A única coisa que lhes interessava era a vitória, ou então que seus filhos e sua cidade soubessem que morreram heroicamente, que não deram as costas para o inimigo, que nunca abandonaram a posição. Enfim, os generais gregos tinham peças confiáveis para seu xadrez militar.

Creio que o sucesso do filme se deve ao mesmo motivo que imortalizou esse feito, nós nos identificamos inteiramente com Leônidas e seus valorosos guerreiros. Na fantasia nos igualamos em bravura a nossos antepassados ilustres na luta pelos nossos valores. Se os meios são tradicionais, os valores são modernos, no filme é preciso agüentar um exaltado discurso pela liberdade e democracia, que melhor caberia na boca dum general nortista da guerra de secessão. O filme projeta nos gregos a democracia moderna, da qual eles de fato nos forneceram o germe, e nos persas a tirania e a escravidão, revivendo alegoricamente a eterna batalha ocidente versus oriente. Não deixa de ser da ordem do dia, pois esse enfrentamento segue em voga, e a visão mútua dos povos envolvidos nessa interminável cruzada é tão simplória quanto a desse filme. Nunca se falou tanto em tolerância, mas seguimos raciocinando através de dicotomias.

Basta um pouco de conhecimento histórico para perceber o que estava em jogo naquele momento: uma vitória persa nos daria hoje um outro mundo. Difícil dizer se melhor ou pior, mas a herança grega que temos estaria perdida. Como nossa cultura ocidental tem um dos pés firmados na Grécia, e como somos o que somos graças também a eles, tendemos a crer que foi uma vitória nossa, e nesse sentido foi mesmo. Em certos momentos da história, um punhado de homens numa batalha inclina a civilização para um ou outro lado e era isso que se decidia nesses confrontos.

Mas quais são mesmo esses valores com os quais nos identificamos? Heródoto nos conta que depois da vitória de Plataia os gregos foram ao acampamento persa, ficaram admirados com a riqueza e do luxo em que viviam os derrotados, e se perguntam: o que eles vieram fazer aqui, se somos tão mais pobres, o que vieram buscar? Em outro momento ele comenta como os persas não conseguiam entender a civilização grega, exemplificando pela dificuldade deles em compreender que nas olimpíadas os vencedores não ganhassem ouro nem cavalos e sim uma coroa de louros. Essas diferenças se sobressaem no filme, dum lado os gregos, estóicos, disciplinados, despojados, homens livres, com os valores da honra acima de tudo e com um desprezo pela morte; de outro lado os persas, com seus exércitos de mercenários, sua hierarquia feudal, sua concupiscência, seus escravos, seus luxos e caprichos. Não importa que não tenha sido exatamente assim, mas o interessante é como nesse filme nos identificamos com esses valores ditos superiores dos gregos.

O engraçado é que olhando em volta vemos uma sociedade agarrada em suas quinquilharias, que supostamente serviriam como insígnias do lugar social de cada um. Nossa hipotética cultura superior é habitada por guerreiros da poltrona, armado de poderosos controles remotos, incapazes de postergar satisfações e por isso afogam suas angustias com drogas legais e ilegais. Vivemos permeados por uma lógica hipocondríaca, que nos faz viver cultuando a saúde e o bem estar, temendo a morte em cada grama a mais acusada na balança e suspeitando sua presença em cada alimento que ingerimos. Nossos heróis barrigudos vivem agarrando-se na vida longa além do razoável, mesmo que a “glória” seja ficar prostrados numa cama. Frente a isso, é de se pensar: será mesmo que foram os gregos que ganharam aquela guerra?

Publicado no caderno de Cultura do jornal Zero Hora
Em Abril de 2007

19/04/07 |
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