Jerkish

Sobre o discurso vazio na política

No livro 1984 Orwel imaginou um mundo em que o totalitarismo venceria e uma das suas conseqüências seria a “novilingua”. Seria uma língua com um número mínimo de palavras, feita para diminuir a capacidade de pensar e, consequentemente, a de manifestar críticas ao governo. Em resumo, só corrompendo a linguagem era possível corromper o pensamento. Os fascismos e o stalinismo nos deram demonstrações práticas dum vocabulário oficial como esse. As ditaduras são muito atentas às palavras, mais do que as democracias.

Mas a questão é: as sociedades democráticas são imunes à corrupção da linguagem? Será que nelas encontramos a plena expressão? Escutando os candidatos à prefeitura de Porto Alegre, eu me inclinaria a dizer que não: infelizmente estamos utilizando novas formas de “novilingua”, andamos falando “Jerkish”. Ivan Klima, um romancista tcheco, batizava assim a linguagem oficial da cortina de ferro. Originalmente “Jerkish” quer dizer uma linguagem desenvolvida para falar com chipanzés, portanto sem possibilidade de metáfora, onde tudo é pão-pão, queijo-queijo, ou melhor, banana-banana. Enfim, um vocabulário oficial que, baseado em clichês, nos faz falar sem dizer nada além da informação mais banal e esperada. Quem fala com esse vocabulário dá voltas nas questões, diz o que é previsível e fica nisso. O “Jerkish” não pede a marca singular do falante. Dessa forma, todos ficam iguais, independente se enunciado por um ou por outro, o dito será a mesma coisa, essa linguagem não permite um estilo próprio. Não se trata de nada imposto, mas um empobrecimento da linguagem que pressupõe em esvaziamento do pensamento.

Mas como pessoas tão diferentes, de intenções e práticas políticas distintas, frequentemente acabam falando a mesma coisa?

O que leva ao clichê é a falta de sinceridade, ninguém diz o que realmente pensa e sim o que é certo dizer, e com o tempo, de tanto insistir no que seria correto dizer, convencemo-nos de que aquilo é o que realmente pensamos. Só que isso não é mais um pensamento: sendo uma repetição de fórmulas esquemáticas, é justamente a ausência de pensamento.

Creio que esse esvaziamento da linguagem deve-se ao politicamente correto. Ele é a o que mais se aproxima de uma “novilingua” e certamente é um Jerkish. A utilização da linguagem politicamente correta, o policiamento do que é dito em busca de que a tolerância seja um enunciado universal, baseia-se justamente nessa premissa: de que o modo de falar dá forma ao modo de pensar, e não somente à inversa. A intenção é das melhores, mas o resultado foi a transformação desse saneamento da linguagem, visando expurga-la dos preconceitos, em uma esterilização do enunciado.

Existem coisas que se pode dizer e coisas que não se pode dizer. Aplicado a questões raciais e sexistas isso pode ser muito bem vindo, mas chegando na discussão política dos temas amplos é um desastre. O politicamente correto na política já não é só uma escolha de palavras, mas é uma forma de não pensar. Ela pressupõe certos axiomas especialmente o coitadismo e a vitimização do cidadão e, como contrapartida, a responsabilidade total do estado: se as coisas chegaram onde chegaram é por que o estado em algum momento falhou. As pessoas, os cidadãos não falham, são sempre bons e oprimidos por forças superiores.

Não existe para essa forma de pensar a responsabilização do sujeito. Todos são vítimas, o carroceiro, o mendigo, o morador de rua e todos nós que o estado não atenderia bem na saúde, na educação. Por exemplo, se alguém perguntar sobre a população de rua que não pára de crescer em Porto Alegre, todos vão dizer a mesma coisa: em princípio vão deixar claro, muito claro, que essas pessoas acampadas nos espaços públicos são vítimas genéricas da degradação da sociedade e que faremos todo possível para saber quem são e como tirá-las das ruas respeitando as suas particularidades. Resposta que seria mais verdadeira: não tenho nem idéia, a legislação brasileira é culposa e nos amarra, permite a privatização do espaço público pelas hordas de miseráveis. É difícil reintegrá-los especialmente por que eles nem sempre se interessam por isso. Não tenho nenhuma idéia nova para isso e, provavelmente, se eleito for, não vou fazer nada por isso, assim como o prefeito atual e os anteriores, próxima pergunta.

Nosso presidente fala demais. Deve sentir saudades dos tempos de pessoa comum, quando podemos ser saudáveis palpiteiros. Seu cargo pede palavras medidas. Mas ele fala mesmo assim e diz uma série de coisas que viram folclore. As palavras do presidente furam o bloqueio do que deve se dizer e marcam nossos ouvidos por que finalmente alguém diz algo sincero. Pode não ser uma grande coisa, mas ao menos é verdadeiro e como há tão pouca verdade no discurso político que nos faz escutar de uma maneira diferente.

Publicado no Caderno de Cultura Zero Hora dia 04 de outubro de 2008

04/10/08 |
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