MAMONAS: Os irmãos mais velhos do Brasil

Texto na ocasião da morte do conjunto, reflexões sobre

Apesar de sua desbragada baixaria, a música dos Mamonas Assassinas era uma lliberação ao mesmo tempo sutil e escancarada da mais chocante descoberta psicanalítica de Freud: a sexualidade infantil

Vivemos um cotidiano de seres humanos privados, não no sentido da privação, mas da privacidade. Para a maioria, a rotina do noticiário noturno, encontra espectadores indiferentes pelos mais impactantes acontecimentos. Mas às vezes vivemos momentos em que somos arrancados do infernal ninho de amor familiar para vivências públicas de pertencer a alguma coisa grande, situações de comoção política ou social nas quais temos aquela incomparável sensação de que algo pode de fato ocorrer, seja da ordem da morte, da felicidade, da loucura. Com os Mamonas foi assim a sua tragédia tornou-se nossa.

Os Mamonas entravam com sua jubilosa luxúria juvenil no universo do privado, cantavam dentro da nossa casa, mas ao morrer tornaram-se um evento público, um acontecimento que obrigou mesmo os mais desavisados a lhes dedicar uma palavra de dó que seja. Levou o país inteiro a contemplar o espetáculo dos cinco caixões sobre um dos quais alguma fã jogou um ursinho de pelúcia e a namorada um boné. Assim, vendo aquele enterro infanto juvenil que a televisão ostentou o dia inteiro, acabamos por nos perguntar, mas afinal quem eram eles e onde é que eles encaixaram em nossas vidas?

É inegável que eles ocuparam um espaço que não é somente o da morte de um músico. Tom Jobim, verdadeiro representante da alma  nacional, morreu com metade do estardalhaço.

É a tragédia, dirão, é a morte arrebatando da vida cinco jovens que eram um mar de promessas. Eis aí que as coisas começam a se articular: havia algo no lugar por eles ocupado que se imiscuiu no nosso mundo privado, doméstico. É como se tivesse havido uma desgraça com um jovem amigo de nossos filhos. Mas falemos um pouco sobre este lugar.

O seu disco tocava em todas as casas onde houvesse uma criança (mesmo bebê) ou jovem, as crianças sabiam as letras de cor e castigavam o aparelho de som com a paixão pela repetição que lhes é característica, enquanto os pais cantarolavam baixinho o Sabão Crá Crá, ou o Vira, meio envergonhados. A princípio não pareceria algo muito diferente das diversas músicas picarescas que já acompanhavam o cotidiano da infância: “Nabuco foi à fonte… “, “Jingle Bells, acabou o papel…” e por aí afora.

Porém, embora se trate de um produto cultural nada erudito, é uma música que prova que nossos rebentos têm alguma noção do que possa ser um humor coalhado de sutilezas apesar da aparente desbragada baixaria. As letras dos bagunceiros de Guarulhos obrigaram as crianças a verdadeiros exercícios de memorização de letras complicadas, cheias de detalhes, e a cuja reprodução fiel nossos pequenos se dedicavam com o afinco que nossos avós dedicavam ao “Navio Negreiro” em seus tempos de colégio. Ora dirão vocês, grande coisa dedicar tanto tempo a pensar em bandalheira!

O problema é que essa bandalheira é o preço do recalque da sexualidade infantil, é a vingança pelo não reconhecimento dessa. Um das razões do sucesso do grupo é restituir, viabilizar de uma maneira possível, que podemos até considerar de gosto duvidoso, o que ficou excluído. Considerando outras formas de lidar com o recalque, a bandalheira é muito bem vinda, pelo menos é verbalizada e não precisa ser atuada num momento em que seria problemática. Não dá para pensar que o vocabulário mamona introduza muitas novidades para as crianças no máximo dá contornos para idéias já esboçadas.

Estes moços, trouxeram aos nossos respeitáveis lares o humor, a picardia da arte, mas, diferente dos seus ancestrais mais culturalmente “respeitáveis”, como o “Língua de Trapo”, o “Joelho de Porco”, o “Camisa de Vênus” ou o “Les Luthiers”, para os mais antigos, o fizeram numa ótica adolescente, para consumo de toda a gama de menores de idade.

Assim, vestidos de He Man, Tartaruga Ninja ou Chapolim Colorado, ousaram colocar em inocentes bocas palavras como “suruba” e “corno”, mas também “insensatez”, “hipotenusa” e “amalfagar”. Esta última, palavra inexistente, cuja ausência do Aurélio, depõe de um uso da linguagem próprio da criança: exercitar-se em falar do que não sabe exatamente de que se trata mas fareja que é assunto quente… em todos os sentidos. Mas, diferente de uma música dirigida às crianças, quer com intenções de lazer, pedagógicas ou meramente mercadológicas, trata-se de uma música feita por adolescentes, consumida também pelas crianças.                            

Estes jovens, pensarão alguns, estavam meio passados para serem classificados como adolescentes, porém não estamos nos atendo à idade e sim à posição discursiva.

Para a criança, o adolescente é um horizonte visível de relativização da plenitude e pujança das suas figuras parentais. Embora para ela o poder dos pais seja de esmagadora presença, suas palavras tenham a força de um desígnio e seus corpos o tamanho do universo, está aí o adolescente para mostrar o quão ridículos os “velhos” podem ser.

O adolescente é  potencialmente  cínico. Ele se preocupa com o poder dos pais que o submete, mas fazendo uma submissão tão ruidosa quanto for sua necessidade de dar a conhecer a magnitude dessa força parental, ou seja, é porque duvida da eficácia das ordens dos pais que precisa chamar tanta atenção sobre elas. Óbvio que se estivesse seguro da potência de seus pais não faria tanto ruído sobre esta questão. Observamos o filho já adulto desenvolvendo uma condescendente política de boa vizinhança com seus já envelhecidos pais.

Digo que é cínico, porque mais do que nunca vê o tecido de que somos feitos, e ali onde a criança via uma malha de ferro, o jovem descobre uma fina textura cheia de furos. Nesta época da vida parece que o sujeito está fadado a se ocupar disso o tempo todo. 

Ao adolescente cabe manter as aparências quando se defronta com aqueles  pobres  pai e mãe tão ridículos na sua recente maturidade, que se enlaça com os primeiros sinais de envelhecimento. Os seus pais estão agora inseguros da ética que defendem, confusão própria de uma época de balanço da vida, que os torna indefesos na incerteza do melhor caminho a apontar aos seus filhos. Ao mesmo tempo em que o jovem se percebe amando essas figuras parentais, acha-as extremamente risíveis nas suas inseguras certezas.

As crianças pequenas não são cegas, elas sabem que não são filhas do Super-homem com a Mulher-maravilha, mas não podem lavrar a crítica de próprio punho, limitam-se a admirar e imitar os trejeitos e linguagem, ensaiando-se nos caminhos de crescimento que os irmãos-mamonas ensinaram. Por isso essa bela síntese de um garotão bonito, cantando vestido de Tartaruga Ninja, que ao lado do Chapolim Colorado ao teclado,  falando de um sexo que começa a ser viável. A criança sabe que o jovem mamona já “faz”, mas ele lhe responde como se dissesse: “sabe eu há pouco era criança e sei o que sentes, eu também não podia fazer”.

O problema é que esse adulto que o adolescente e a criança (por procuração) criticam ainda é o “dono da bola”, é ele que possui o direito de dormir todas as noites na cama de casal, é ele que é o mago do dinheiro, tanto para gastá-lo como para ganhá-lo. Para explicar essa posição, nada melhor do que as músicas de amante relegado em troca do “Alemão de carro conversível”. “Soy un hombre conformado …sou um corno apaixonado”, dizem os Mamonas, porque “a mulher” símbolo máximo de uma conquista, pertence ao poderoso possuidor do conversível , ou ao “João do Caminhão”. Seja da categoria que for o carro, o jovem por mais abastado que seja, sempre tem a “Brasília Amarela” e a promessa do conversível no futuro!

Porém nesta viagem interpretativa do fenômeno Mamonas, não podemos desprezar um fato aparentemente surpreendente: no day after da morte dos seus jovens ídolos, enquanto os adultos e adolescentes choravam, as crianças assistiam incrédulas a perguntar-se se essa não seria mais uma brincadeira deles. Mais de uma criança pequena me disse que era mentira, ou que eles seriam “substituídos”,  dando conta do fato de que mais do que personagens, eles articulavam um lugar psíquico. As lojas de discos observaram um outro aspecto: após o acidente mudou o perfil do público consumidor do disco, antes era de “até 16 anos”, após “são principalmente adultos” como nos disse mais de um vendedor. A questão que interessa é porque os adultos choraram mais do que as crianças, contrariando a expectativa mais óbvia.

Quando ocorreu a morte de Ayrton Senna, o choro e o luto infantil foram mais difíceis e mais prolongados. Parecia que havia morrido um parente. É certo que estamos diante de personalidades muito diferentes. Senna foi o brasileiro que deu certo no primeiro mundo, não era um homem de palavras era um homem de fatos, ele foi e venceu, e venceu muito e sempre. Estava talhado para ser um mito do individualismo moderno, solitário e vencedor pilotando uma máquina ultra-sofisticada. Além disso se as crianças o amavam era por uma transmissão paterna, os pais diziam que ali estava alguém digno de interesse. Os Mamonas ao contrário foram descobertos e divulgados pelas crianças e adolescentes.  Talvez eles soubessem que, ao contrário de Senna, os Mamonas não estavam num lugar idealizado. Não é que fossem menos amados, quiçá até mais, mas ninguém pensava em ser Mamona quando crescesse. As crianças sabem que isso é uma fase, pena que nesse caso tenha sido tão breve.

Embora o choro fosse uníssono, os motivos eram diferentes. As crianças choravam um remoto irmão mais velho que lhes ensinava um atalho para as atribuições do mundo adulto. Os adultos choravam a sua adolescência perdida. Essa morte macabra abortando uma adolescência ou melhor um símbolo da postura adolescente não deixa de tocar a cada um. Todos vivemos nossa adolescência como insuficiente, não fizemos tudo, não gozamos o suficiente. Os Mamonas acabaram antes do gozo e os adultos dizem: eles morreram antes de “aproveitar” o sucesso. Simples, a vida foi-lhes arrebatada antes que fosse de verdade, eles ainda estavam ensaiando. O adolescente não brinca, ensaia.

A depressão não diz respeito as frustrações ou insucessos reais mas sim à perda ou traição dos nossos ideais. Nesse sentido perder o Ayrton Senna foi bem mais duro. Os Mamonas não estavam no pódio, apenas representaram magistralmente um trecho do trajeto.

Sobre a reta de chegada eles nos brindaram com a sabedoria que emana dói cinismo adolescente “a felicidade é um crediário nas casas Bahia”. Um paralelo seria mais ou menos assim: um ator principiante recebe um papel de ponta num filme que lhe permite contracenar com os astros e estrelas da época, ao chegar lá, vê que ao vivo a atriz é nanica, tem uma pele horrível e o ator é um bolha. É isso: vossas melhores espectativas não passam de um barco furado, um crediário nas casas Bahia.

No seio desta tragédia ocorre uma ironia do destino: coube àqueles mesmos que trouxeram a sexualidade à da sala da casa, trazer a morte ao mesmo cenário. O interminável das cenas que a televisão apresentava era tão longo quanto a dificuldade de fazer o luto por alguém que mal havia começado a viver. Eles nos cantaram que o amor é complicado, como amantes boa parte da vida somos meio retirantes e vivemos como nordestinos em São Paulo, como os pobres cornos da brasília amarela e, sem querer, nos mostraram que a morte não tem o menor sentido.

Na despedida destes jovens, cabe-nos ainda um tributo a seu estilo. Para quem se incomodava com a música dos Mamonas é bom lembrar que há pouco tempo estávamos condenados a escutar Xuxa que é mais pobre em todos os sentidos inclusive e principalmente de espírito. Para quem reclama da sexualidade que seria precocemente introduzida é bom lembrar também que a Xuxa já fazia o mesmo via um erotismo narcisicamente centrado na sua imagem de virgem que chegou lá a partir de filmes pornô. Nos parece que há um ganho no sexo passar da imagem repetitiva da loira gostosa, para um texto cheio de humor e sutilezas. Numa acepção estritamente freudiana, o sujeito se libertaria de padecer com complicações originárias de sua sexualidade se delas pudesse falar. A contemplação das curvas da loira é algo que se esgota em si mesmo. O tabu da sexualidade infantil, que foi a descoberta freudiana mais chocante, segue produzindo efeitos, podemos fazer de conta que a Xuxa não tem uma dimensão erótica, mas é impossível  negá-la quando as crianças cantam os refrões dos Mamonas. Assim, a decifração dos enigmas do sexo, que é uma das tarefas princeps da infância segue um segredo de estado.

Talvez possamos ouvir o que dizem as crianças: que eles construíram um lugar que não morre. Que souberam ocupar, por mais paradoxal que possa parecer, com certa elegância. Por isso podemos dizer adeus aos cinco anjos pornográficos com o agradecimento pelos ensinamentos que deixaram. Mais uma vez constatamos que embora sem barricadas, as novas gerações continuam dando o que pensar aos mais velhos.

Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, com o título “Os irmãos mais velhos do Brasil”, em 16 de março de 1996

16/03/96 |
(0)
Nenhum Comentário Ainda.

Comente este Post

Nota: Seu e-mail não será publicado.

Siga os comentários via RSS.