Noites no Aqueronte

Há utilidade e até poesia sutil em certas bagunças renitentes.

Ao lado da cama, sem perceber, eu havia ancorado um minúsculo barco de metal. Dentro dele uma moeda esquecida. Um dos tantos objetos sem sentido que preenchem uma casa. Já reparou que sempre há algumas quinquilharias que nunca vão para seu lugar? Sabe por quê? Porque aquele é o seu lugar. Foi assim com meu barquinho despropositado.

O enfeite herdei do meu pai, na verdade o recolhi entre seus objetos, depois que ele se foi. Ele não o teria dado, estava usando. Como eu, tinha-o parado ali em seu porto, pronto para levá-lo de volta para casa. Eu não tinha entendido essa missão.

Meu pai veio de barco para a América, fugindo do nazismo. No porto foi a última vez que viu seu pai e seu irmão, mas na ocasião ele não sabia disso. Quem sabe se pudesse navegar de volta àquele momento pudesse evitar, ou mesmo despedir-se com um verdadeiro adeus. Ele partiu com um até logo, que sempre lhe pareceu insuficiente.

Quer sejamos religiosos ou não, imaginamos que nossos mortos sempre estão em algum lugar, no mínimo aquele onde nossos pensamentos os visitam. Talvez para esse fim, ou mesmo para o seu fim, meu pai tenha guardado sua pequena embarcação de metal.

Para os gregos, era um barco que levava para o Hades, terra subterrânea dos mortos, sua última morada. Não era céu nem inferno, apenas um outro lugar. Porém, o acesso não era gratuito: custava uma moeda, entregue a Caronte, o soturno barqueiro incumbido da travessia do rio Aqueronte. Para tanto, na cerimônia de despedida dos mortos, uma moeda era colocada na boca ou nos olhos do defunto, que partia com o pagamento necessário. Precavida, jamais vou dormir sem uma moeda em meu barquinho. Pelo jeito, tomei precauções sem notar, pois não quero ficar navegando a esmo para sempre.

Cada noite de sono é uma visita às margens do Aqueronte. O abandono do corpo, indispensável para dormir, requer também abrir mão da consciência de si. Ficar inconsciente, nem que seja pelas horas que separam um dia do outro, pode dar medo, é como morrer temporariamente.  Meu barquinho representa tudo isso, tão pequeno e tão carregado. A morte de cada noite, o extermínio do qual meu pai fugiu, outros não, sua espera pela viagem final e a minha.

Repare nas suas pequenas bagunças, elas encerram em si muito mais verdades do que os enfeites de nossas casas. Os objetos decorativos são como a cara que apresentamos ao espelho, nossa versão editada. Já os aparentes desleixos, principalmente aqueles objetos que se abancam num lugar como se tivessem vontade própria, esses contém muitas verdades. A minha, é que vivo a cada dia consciente de que estou nesta margem apenas por um tempo. Grata pela sua duração, mas quando for a travessia, quero estar preparada.

Um Comentário
  1. Vânia Barth Portnoi permalink

    Belo texto!!!
    Obrigada por compartilhá-lo conosco.

    Eu já o compartilhei com meus amigos e amig@s.

    Um abraço!
    VÂNIA

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