O Analista de Bagé no divã

Reflexão sobre o personagem Analista de Bagé de Veríssimo

Para um estado de forte tradição psicanalítica, que produziu importantes analistas, não deixa de ser irônico que o mais famoso deles seja uma personagem. Para quem não sabe, lá pelo início dos anos 80, Luis Fernando Veríssimo crescia como escritor, suas crônicas ganhavam o Brasil, e o empurrão definitivo para o reconhecimento nacional foi dado pelo Analista de Bagé, seguramente a personagem mais importante de sua carreira (Ed Mort e a falecida velhinha de Taubaté que me perdoem).

O Analista de Bagé é a psicanálise e seu avesso. A questão central da psicanálise, que é a escuta atenta, fica preservada, pois é para bem de ouvir o que têm a dizer que ele deita os pacientes em seu pelego. Ao mesmo tempo propõe as mais descabeladas soluções – geralmente politicamente incorretas – para os males da alma que lhe são trazidos. Ele abre o flanco para as complicações e os raciocínios circulares dos neuróticos (nós todos), para logo a seguir arrematar com um joelhaço, real ou verbal. No fim, para ele o problema é geralmente de falta de laço, tarefa que não o intimida, ou de sexo, o qual, caso a paciente seja aproveitável, ele mesmo se dispõe a sanar.

Se era bom analista? Vejam o que diz dele o Taurino Netto, reconhecido psicanalista Passofundense, no seu livro a Influência da Psicanálise na Revolução Farroupilha: “Se me perguntarem qual é o maior olho clínico gaúcho, respondo em cima do laço: o único que reconhece rengo sentado, cego dormindo e louco pelo semblante, é o Analista de Bagé. E se me perguntarem quem ponteou a psicanálise no estado? Quem foi o mais conhecido e mais importante taura analista? Respondo o mesmo: o Analista de Bagé, o bagual pêlo-duro que nos ensinou a pealar e manietar louco só com palavras, afagos e joelhaços”.

Escritores criam e matam seus personagens, mas é o público quem de fato lhes dá a vida. Isso nos coloca a questão: em que Veríssimo acertou para que sua criação tivesse tanto sucesso? A forma como esse analista grosso tira os problemas da toca para em seguida matá-los a pauladas, revela algo do exercício da clínica, numa hipérbole da prática analítica, é claro. Mas há também na personagem uma representação da nossa identidade regional: o gaúcho se vê e quer ser visto que como alguém profundo, mas de casca grossa. É erudito, mas capaz de sair na faca. Muito preocupado com a imagem viril, empenha-se em afastar de si a aura de delicadeza que a intelectualidade empresta. O Analista combina em proporções iguais esses elementos opostos: a psicanálise, e sua sofisticada hermenêutica, com a sabedoria do campo, e suas metáforas rurais. O poder dessas últimas parece emanar da condição de sentir-se à vontade nos pagos que o destino lhe designou. Ele sabe das coisas simples da terra, porque com ela está em bons termos, aqui outro atributo da autoproclamada identidade gaudéria. O sujeito urbano seria mais instável, neurótico, eterno estrangeiro desajustado, por estar longe da querência. No sul a urbanidade é freqüentemente vista não como uma condição positiva, mas sim como uma perda da terra de origem. Portanto, existe coisa melhor do que ter a erudição sem perder a simplicidade telúrica jamais? Só mesmo ele, o Analista de Bagé.

A neurose consiste em colocar os problemas pra engorda em vez de enfrentá-los. Se alguém tem um problema: por exemplo, um homem que considera que lhe falta uma presença viril mais forte. Nesse caso é mais fácil ficar pensando que os colegas o desmerecem, que a mulher que ama atiça seus ciúmes, interessando-se por todo homem que passa, e assim por diante. Seria bem mais simples perguntar-se porque ergue um panteão onde prefere colocar a imagem de outros homens, antes da sua, assim como constatar que sua desvalia viril serve para poder admirar outros homens, e especialmente seu pai. Claro, o analista de Bagé resolveria esse caso imaginário dizendo pra criatura que ele é um coitado mesmo. Acrescentaria que não se trata de complexo de inferioridade masculina, mas da realidade de que ele é realmente inferior! Que ele é um homenzinho de nada, um guri que não cresceu. Intervenção assim, tresloucada, aposta na indignação do sujeito. Algo como: reage vivente! Coisa bem diferente da atitude de complacência que costumamos adotar com nossos semelhantes, a quem costumamos oferecer um espelho para enxergarem aquilo que acreditam que são.

Eis um joelhaço, verbal! Intervenção, que embora absurda, poderia ser qualificada de analítica, afinal acaba com a festa das ruminações, corta a realidade linear. Na simplificação grosseira do drama revela-se o quanto cada neurótico nutre seus dilemas. Muitas vezes, conduzimos nossos problemas tal modo que não se solucionem e só se perpetuem, até que se consulte um analista que chute o balde dessa milonga de uma só nota.

O humor nos confronta com o ridículo o nosso acervo de convicções e identidades. O divã do Analista de Bagé se presta também para isso, sentimo-nos meio bobos. São melindres psíquicos duma sociedade influenciada pela psicanálise e outras teorias, nesses tempos do politicamente correto, do discurso da vitimização, em que tudo parece ter nos traumatizado irremediavelmente. Frente ao Analista de Bagé isso fica sendo conversa pra boi dormir, coisa de gente mimada. Luis Fernando faz com que essa simplicidade provoque o riso lá onde expressamos a nossa dor, rir de si próprio é um baita remédio.

A psicanálise vive da eficácia de seu aparato conceitual, mas na medida em que ele é também conhecido e aceito pela comunidade. Nesse sentido, o Analista prestou um inestimável papel na divulgação da psicanálise. Se até alguém de Bagé (por favor bajeenses, tomem pelo lado mítico que vossa cidade ocupa), um índio xucro, grosso como dedo destroncado, pode se apropriar do discurso freudiano, então qualquer um pode. Ou seja, tudo indica que essa tal de neurose não é frescura de prenda e de gente de Pelotas (também lado mítico, entendam…) existe mesmo.

Como se vê, o neurótico complica, Freud explica e o Analista de Bagé simplifica.

Publicado do Caderno de Cultura Zero Hora
01/09/06 |
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