O Causo dos Quatro Negros

Sobre o livro de Luis Augusto Fischer

Aqui nos pagos estamos acostumados ao Luís Augusto Fischer como professor de literatura, ensaísta e autor de dicionários, tão precisos quanto bem humorados. Pois resulta que de tanto lidar com o jeito particular que temos de torcer as palavras para a nossa sardinha, sejam as regionais, as estrangeiras ou os ditos espirituosos, aconteceu dele usar tudo isso para contar uma história, várias aliás, em sua primeira experiência com a narrativa longa. Trata-se de Quatro Negros (Ed. L&PM).

São causos de gente comum, gente negra, todos eles. Gente interiorana, ou que traz ainda frescos na alma os ermos dessa paisagem. Não são gaúchos com vidas epopéicas, como os do Érico, e estão longe de amarrar os cavalos em algum obelisco. Da grande cena sabem pouco. A coragem deles é a mesmo que qualquer um de nós precisa para viver nossas nada glamourosas vidas: muita.

A personagem mais marcante, que costura a narrativa, a Janéti, teve uma origem triste, em família pobre de posses, espírito e laços, como pobre, aliás, é também o entorno geográfico. Trata-se dum pedaço de mundo  parado no tempo, situado na metade sul do nosso estado, quilômetros de pasto, umas poucas vacas espalhadas, um pingo de casas, um quase ninguém de almas. Verde, mas desértico. Rarefeita também é a conversa das personagens de Quatro Negros; mas não se espere deles um humor melancólico, há uma força vital feita de gestos, frases curtas, sorrisos largos. Nessa expressão quase minimalista reside o segredo dessa narrativa. Retratos de vidas tão desprovidas de glória e visibilidade quanto acidentadas de provações. Histórias de gente invisível, do povo dos bastidores, esses nos quais habitamos. E são lindas.

Essa gente humilde de Fischer não tem a puerilidade tragicômica de Macabéa, de cuja vida estreita Clarice Lispector fez poesia. O narrador da história, freqüenta a vida de suas personagens com curiosidade de estrangeiro, respeito de antropólogo e liberdades de literato. Aliás, o livro é em memória ao saudoso antropólogo Jorge Pozzobon. Talvez seja pela antropologia uma boa forma de definir essa literatura: tenta apreender a essência de pessoas diferentes, que lhe intrigam, mas que o narrador ao invés de julgar, deixa-se envolver.

Nem todos vencem, alguns desistem, total ou parcialmente, e nem sempre frente às adversidades mais óbvias. A interrogação que fica é sobre o que alimenta a sobrevivência destas flores do deserto. É difícil dizer o que dá forças, ou as retira, nos momentos de provação ou conquistas. Isso é imponderável e imprevisível, podemos matar um leão e ser derrotados por um rato. É bom ler o causo da Janéti, uma cabeça dura de coração mole, do seu Sinhô, um livre pensador sem instrução, neto de escravos, do Jorge, que se afastou tanto de si mesmo que se perdeu, da Rosi, que ria à toa. Não precisa de guerras, bravatas, crimes nem assombração para ter causos para contar, a vida é assim mesmo, muito assombrosa.

22/02/06 |
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