O futebol e as mulheres

(perguntas de Camila Gonzatto para o site do Instituto Goethe) 1-O que essa paixão do brasileiro pelo futebol, enraizada tanto dentro quanto fora do país, pode nos dizer sobre nossa cultura? Sinceramente, muito pouco. O futebol não foi criado aqui nem somos os únicos mesmerizados por ele. Claro, criamos uma maneira de jogar que talvez […]

(perguntas de Camila Gonzatto para o site do Instituto Goethe)

1-O que essa paixão do brasileiro pelo futebol, enraizada tanto dentro quanto fora do país, pode nos dizer sobre nossa cultura?

Sinceramente, muito pouco. O futebol não foi criado aqui nem somos os únicos mesmerizados por ele. Claro, criamos uma maneira de jogar que talvez diga de nós. Jogamos com menos disciplina e aplicação que outros lugares, nosso futebol tem menos matemática e mais improviso. Nosso futebol é do desconcerto, da jogada inesperada, do improviso, da ginga, da enganação. Gostamos de nos ver como um Pedro Malazarte, um malandro enganador. Sem força nem meios, que tem que vencer pela malandragem, nosso futebol é assim, ou pelo menos quer se ver assim.

2-O imaginário do futebol sempre foi construído em torno do homem. Como fica a mulher nessa história?

O mundo foi construído ao redor do homem, apenas no século XX que isso começa a mudar. O futebol é apenas mais um espaço masculino. Alguns esportes coletivos são simulacros de guerra e o futebol se encaixa nisso, uma guerra benigna, sublimada, mas um combate. Mais uma razão para a mulher estar de fora, afinal, guerreiros eram os homens.

As mulheres vieram para o futebol como para todas as outras coisas. Como a mulher deve ser agora que tem liberdade de escolher seus caminhos? Deve criar uma maneira nova ou ocupar o território dos homens? Na verdade as duas coisas não são excludentes, e no futebol elas vieram conferir o que é que nos enfeitiça, qual a nossa paixão. Eu acredito que elas não deveriam vir. Nada contra, são bem-vindas, mas não acho que seja uma boa ideia, já basta nós homens nos idiotizarmos por uma paixão inútil.

Torcer por um time é uma experiência totêmica, pertencer a algo, carregar uma bandeira. Quando nossas insígnias de filiação a coisas mais sérias, como as políticas religiosas, nacionais enfraqueceram, as parasérias (se é que a palavra existe) ganharam relevância. O futebol é a mais importante das coisas irrelevantes. Embora haja gente tão destituída de referencias que precise levá-lo a sério. Então, por que as mulheres viriam para cá, já chega metade do planeta perdendo tempo com uma disputa que no fundo é infantil. No fundo o “meu time contra o teu time” é herdeiro da bravata infantil onde se diz: “o meu pai é melhor que o teu”.

3-Mesmo com tantas mudanças sociais e identitárias nas últimas décadas, o futebol segue sendo um assunto de homem. Como podemos pensar nos “excluídos” nesse contexto – mulheres que gostam de futebol e homens que não gostam?

Segue assunto de homem porque as mulheres que vieram se dão conta do vazio e vão embora. Algumas ficam, afinal, rende assunto, ou pegam gosto mesmo pelo precário show que é mostrado.

Não creio que eles sejam excluídas, não me faz sentido pensar assim. Ninguém as manda embora, se quiserem tem lugar para todos. A verdadeira questão é que não tem nenhum pote de ouro no fim desse arco-íris, as mulheres não perdem nada não vindo, por isso não há sentido em falar de exclusão. Não acredito que o futebol e seu entorno enriqueça alguém culturalmente, ver uma partida não é como ler um livro, como assistir uma peça, como ver um balé. O futebol pode ter uma graça e uma empolgação, mas não deixa traços maiores em cada um. Ele tenta construir uma épica num mundo chato, mas consegue muito mal, muito precariamente.

Já homens que não gostam de futebol são discriminados. É como se faltasse algo neles, como se não fossem bem homens ou não totalmente homens. Não é uma discriminação forte, mas algo parecido com um desprezo misturado com um desconcerto. A identidade de torcedor tem raízes tão fundas que quem as tem não consegue acreditar que os outros não a tenham, é como os religiosos quando estão na frente de um ateu. Estamos sempre tentando enquadrar os outros com nossa maneira de funcionar, nos projetamos no outro e tentamos entende-lo a partir disso, por isso entendemos tão pouco e tão mal a diferença.

4-Em um dos seus textos você afirma que o torcedor fanático, quando faz parte da massa e é capaz de atos de violência e amor incondicional a um time, seria a imagem do ocaso do macho tradicional?

Uma das vantagens da experiência de torcer, de ir ao estádio, de sair as ruas comemorar é sentir-se parte de algo maior. Pertencer a um coletivo e sair com ele para uma comemoração ou sair só para torcer quebra com o mundo individualista que vivemos. Naquele momento o que pulsa é outra coisa, é deixar de ser um. Ora, ser nós mesmos nos cansa, pode ser umas férias de si mesmo. Isso pode ser lúdico ou pode abrir o caminho ao pior. A massa nos dá uma energia extra mas regula nossas qualidades pelo mínimo múltiplo comum, nos rebaixa moralmente, eticamente, espiritualmente, enfim, em todas modalidades possíveis. Em conjunto, em grupo, podemos fazer coisas que jamais faríamos sozinhos. O mesmo vale para as gangues, ali ficamos diluídos e assujeitados a um humor que pode não ser o nosso.

Falo em ocaso do macho pois a questão da violência sempre definiu o homem, o arquétipo da masculinidade é o guerreiro, o soldado. Hoje os caminhos para ser homem são menos óbvios, mais pessoais, sem rituais claros. Ora, quem tem uma imagem frágil da questão masculina pode se refugiar na massa do futebol para arranjar encrenca e exercer uma violência que lhe devolveria um protagonismo viril que ele não sente que tem no resto de sua vida. Nesse sentido ser um torcedor fanático e brigão fornece uma consistência imaginária de ser homem, de ser poderoso.

5-E existem torcedoras fanáticas com essas características?

Creio que não, justamente por que uma mulher, mesmo que ame muito um time, não fica convocada a sair batendo nos outros para reafirmar qualquer coisa. Pelo menos não conheço amazonas-torcedoras. As mulheres decididamente pegam mais leve na paixão clubística. Tanto que não é incomum uma mulher trocar de time porque tem um namorado ou marido fanático e querem compartilhar com ele essa experiência. Isso agora acontece menos, as mulheres de hoje não são tão volúveis com seus times, mas segue acontecendo. Um homem jamais troca de clube, ele é fiel e é para sempre. Um homem pode trocar de profissão, de convicções políticas, até de orientação sexual, mas nunca abandonará a camiseta do seu clube. O casamento com o clube é para sempre. Para muitos existe também o time Nêmesis, o time mais odiado, o antagonista principal, aquele que ele odeia com todas as suas forças, com uma paixão quase tão grande como seu amor primordial. Eventualmente ele pode ter suas amantes distantes, uns flertes com times de longe, que eventualmente tenham as mesmas cores, ou que lembrem seu time, mas não é nada sério. O torcedor é o último fiel.

6-Você acha que já é permitido, quiçá bem visto, socialmente uma mulher gostar de futebol?

Sim, ninguém acha estranho uma mulher torcer, vestir uma camiseta e gritar desesperada. Eu acho apenas mais uma alma perdida para a falta de bom senso, mas, que posso dizer, eu gosto de futebol. Talvez eu esperasse que elas viessem a denunciar nossa paixão idiota, nossa babaquice de carregar insígnias paternas sem sentido.

7-Como é esse universo feminino do futebol, em termos de imaginário e comportamento?

Tenho uma amiga que gosta muito de futebol, vai a campo, torce, sabe de tudo. Mas o legal é que ela pega muito mais leve com isso, parece um homem no saber sobre o futebol, mas tem uma leveza que nós não temos. Como se para ela fosse mesmo uma grande brincadeira, que de fato é, mas que nem todos conseguem ver dessa maneira. Se as mulheres trouxerem, como ela, para o futebol, essa ideia de carnaval e não de embate acho que seria muito bem vindo.

Mário Corso é psicanalista e torce para o Sport Club Internacional de Porto Alegre, vulgo Colorado. Não se emociona com outros times fora o Botafogo do Rio de Janeiro (namoro discreto), e o Fussball-Club Bayer Munchen, apenas porque ganhou, de seu pai, e nem sabe de onde saiu, uma camiseta desse time quando era criança, e, é claro, o uniforme também é vermelho.

Perguntas de Camila Gonzatto

é roteirista e diretora de cinema e TV e cursa doutorado em Teoria da Literatura na PUC-RS.

24/08/15 |
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