O psicanalista era o culpado

Comentários sobre o livro A consciência de Zeno de Italo Svevo

“A Consciência de Zeno”, de Italo Svevo, esteve muitos anos fora de catálogo. Para nossa sorte a Editora Nova Fronteira trouxe o livro de volta numa tradução bem caprichada de Ivo Barroso e um interessante posfácio de Alfredo Bosi.

É um romance de primeira grandeza, só isso já valeria a recomendação, mas no nosso caso temos uma particularidade: trata-se de uma das primeiras obras em que a psicanálise é mencionada e o psicanalista é um personagem. O fato é particularmente relevante na sua época, na qual, para desespero de Freud, da comunidade artística só tinha a adesão indesejada dos surrealistas.

Na verdade o psicanalista está oculto, a ele são endereçadas as linhas, e está para ser escarnecido pelo herói da trama que quer demonstrar que a psicanálise não funciona. A trama é a vida de Zeno, mas ele só a narra por que é incentivado pelo seu analista como um exercício da memória com fins terapêuticos. Depois, na posse de seus manuscritos, o analista publica a obra que é como nos teria chegado. Ou seja, o mote do livro seria uma autobiografia psicanaliticamente orientada. Para época em que o romance foi escrito (1923) isto era uma boa sacada.

O livro está dividido em quatro grandes partes. Seguramente a mais divertida é a primeira, onde ele nos conta as suas patéticas tentativas de deixar de fumar. As descrições servem para qualquer vício, na fineza psicológica da descrição da compulsão (o pessoal do núcleo toxicomania vai adorar). Nem precisa dizer que para aquilo que ele considera o seu grande mal, o fumo, o psicanalista não dá a mínima.

Na segunda começa o drama, sua impossibilidade de fazer qualquer coisa, de tomar qualquer caminho e sua relação com seu pai. Poderia se chamar capítulo da neurose obsessiva.

Na terceira e maior parte a sua vida amorosa, o casamento as dúvidas sobre quem afinal ele ama, seus negócios. Permeando a tudo as suas teorias sobre seus males que beiram a hipocondria e a descrição pormenorizada do nascimento de lesões conversivas.

Termina com a psicanálise e seu ataque contra o seu psicanalista e a psicanálise mesma. Aqui entra nosso interesse outra vez, a sua cura, ou algo que possa ser chamado assim é de fato efeito de sua análise, a mesma que ele nos conta que não lhe deixou efeitos. Vocês não conhecem nenhum paciente assim, não é? A grandeza do escritor é realmente fazer Zeno falar numa direção e nos convencer do contrário.

O autor teve contato com Edoardo Weiss, que era o psicanalista que animava o ensino de Freud em Trieste nesta época. Não é descartado que o psicanalista do livro tenha sido moldado a sua imagem. O problema é que Weiss não gostou nada da obra e censurou o autor por mau uso das idéias analíticas. Muito tempo depois acredito que dá para constatar o contrário. O romance foge do caminho, tantas vezes trilhado, de um herói que é destruído por seus conflitos internos. A própria narrativa que testemunhamos é o que interrompe esta trajetória. A bronca de Weiss vinha de uma idealização do alcance da cura analítica, algo próprio de uma época de afirmação de uma jovem ciência.

Italo Svevo é o pseudônimo de Ettore Schmitz, um triestrino, filho de pai alemão e mãe e italiana viveu na fronteira destas línguas e culturas. Era amigo de íntimo de Joyce e mantinham uma correspondência, amizade que lhe valeu, sem que fosse necessário, mais visibilidade ainda para sua obra.

Poucas coisas são tão ricas como compartilhar uma obra, um filme, uma letra de música, no caso do romance é mais complicado, nem todo mundo tem o nosso gosto e hoje se lê tão pouco. Minha intenção, agora já não mais secreta, é que mais gente leia para poder elaborar junto umas hipóteses sobre a real doença de Zeno, e o que o fez melhorar. Enfim, para pensar como um caso clínico, pois poucas obras dão uma dimensão tão humana e tão real do sofrimento neurótico, e de como que se pode levar e ser levado por uma neurose.

Então caro leitor, eu resolvi o seu problema de leitura de férias, são três coelhos com uma só cajadada: um grande romance, você não vai se culpar por não estar estudando algo sério e a diversão é garantida.

Publicado no “Correio da APPOA” número 108, Ano IX

30/04/94 |
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