Ora direis ouvir os sonhos…

Comentários sobre Interpretação dos Sonhos

Não é um livro fácil e não sei se é um livro para todos. Explico-me: julgo que a resistência ao livro vem pelo estilo de clínica que é implementada. Acredito que a grande contribuição da Interpretação dos Sonhos é este estilo de intervenção. Não é difícil desdobrar desses inúmeros relatos de sonhos num savoir faire clínico. Uma compreensão que o afazer do psicanalista está na sutileza da escuta do significante, está na dureza das letras, está em rastrear as poucas pistas que o inconsciente nos deixa. Quem nunca interpretou um sonho seu, quem não lembra deles, quem não consegue se conectar com o seu material onírico não vai se conectar com o livro.

Creio ser o melhor texto para descobrir como Freud trabalhava. Mais do que nos casos clínicos exaustivamente relatados é na Interpretação dos Sonhos que temos um sem número de detalhes de como as costuras de sentido iam sendo perseguidas, de como Freud desdobrava as fibras do tecido significante. Aliás é um analista bem intervencionista que ali se revela, há um papel ativo na deconstrução do sonho.

Não foi muito trabalhoso transformar os Três Ensaios em uma leitura desenvolvimentista da psicanálise, nada impossível servir-se do Ego e o Id para uma engenharia racionalista da subjetividade, e de ambos como lastro para uma visão esquemática e prática do afazer psicoterapêutico em que a psicanálise se transformou durante décadas. Dentro desta abordagem, digamos pragmática, da psicanálise, sonhos eram sim trabalhados, por praxe que fosse, mas tomados em um grande contexto imaginário onde assim como os pobres atos falhos, precipitavam verdadeiros delírios paranóicos de auto-referência dos psicanalistas habituados a trabalhar numa dimensão densamente transferencial, do aqui, agora, comigo. Nada mais avesso ao texto da interpretação dos sonhos…

Essa obra foi abandonada durante anos principalmente pela terapeutização que a psicanálise sofreu nas mão da IPA, por ser um texto rebelde a qualquer tentativa de esquematização simplista. A abordagem dos sonhos não pode ser massificada, enquadrada em esquemas fixos, ela conduz necessariamente ao particular de cada história. Freud dizia que os sonhos eram a via régia para o inconsciente. Mais do que isso: uma prática de sua decifração é um bom caminho para a clínica não sair dos eixos analíticos, não ser puxada para o bom senso consciente que nos tenta a cada tanto.

É interessante notar que esse é um dos textos de Freud, embora seja dos tempos inaugurais, que menos envelheceu. São cem anos e ele continua atual e instigante, ensinando clínica a quem se atreve a habitar suas páginas.

O texto foi esquecido porque é ilegível sem a premissa da retomada de Freud feita por Lacan. Sejam os próprios lacanianos ou outros tocados pelo estranhamento relativo ao método esquemático que a psicanálise se tornara, sensibilizados pela dica de Lacan de que o ensinamento de Freud passa pela escuta do discurso, gerações mais recentes tornam-se capazes de receber o ensinamento da Interpretação novamente mas…estranho…ainda não a lê-la, por quê?

Um século de Interpretação dos sonhos e não seguimos o conselho de Sandor Ferenczi. O mais próximo discípulo de Freud tinha a idéia que esse livro tinha algo de intraduzível, propunha que essa obra tinha que ser reescrita em cada língua. Mais do que isso, que todos as obras onde a questão da língua estava em primeiro plano deveriam ter o mesmo tratamento. Infelizmente ninguém se lançou nessa empreitada. É preciso então um esforço a mais, os sonhos da Traumdeutung são bonitos mesmo em alemão. O convencimento que cairia por si precisa, quando traduzido, ser explicado. Os exemplos perdem a força.

A idéia original de Ferenczi hoje é um pouco antiquada, ele concebia uma linguagem inconsciente de cada língua, estava ainda preso a concepção ôntica do inconsciente. Mas a crítica ainda é válida, seja como for, cada língua faz uma diferença. A questão é como nos saímos na nossa.

Que significaria apropriar-se da operação freudiana, adaptá-la à nossa lingua, sem evocações fetichistas do Brasil, como já ocorreu em outros momentos da história da psicanálise brasileira? O fato é que confrontados com a alteridade, com um texto tão europeu quanto o freudiano, nos inibimos. O “texto estrangeiro” acaba tendo um efeito de quase sagrado, tal a dificuldade de se apropriar que temos.

Adaptar o texto da interpretação dos sonhos não significa tomar a recomendação de Ferenczi ao pé da letra, não precisamos escrever outro livro. Adaptar a nossa língua significa em primeiro lugar valorizar a arte da interpretação como a parte melhor de nosso afazer, colecionar casos e excertos como nosso mais estimado tesouro, escrever sobre sonhos, comentar em momentos de estudo, até produzir uma cultura comum de valorização do ato de sonhar e interpretar. A premissa é a colocação em público de nosso trabalho psíquico neste território nebuloso onde o inconsciente se joga.

O não lido e não adaptado texto alemão de Freud permanece como aquelas maiúsculas das iluminuras que os monges colocavam na abertura do texto bíblico, que se transmutam em flores, voltinhas e reverbelas, espalhadas pela página e convidando-nos mais ao devaneio religioso, ao enlevo sagrado do que à leitura compreensiva, à apropriação do texto. Ler, exercitar-se pela prática que emana destas páginas é produzir a nossa versão. Sabemos que a psicanálise só terá sobrevida possível se persistir enquanto uma prática inteligente, permeável à cultura e hábitos em que se desenvolve, permeável basicamente à linguagem em que é praticada.

Publicado no “Correio da APPOA”, número 76
19/01/00 |
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