Replicantes: reivindicações terminais

Trecho do Capítulo 6, do livro “Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia”, dedicado às criaturas Golem, ao monstro do Dr Frankenstein, aos replicantes de Blade Runner. Disponibilizamos aqui, em comemoração ao novembro de 2019, data do futuro previsto na distopia de PhilipDick, filmada por Ridley Scott.

“As coisas elétricas também têm sua vida,
por pequena que ela seja. ” (Philip Dick)

Humanos falsos e verdadeiros

As primeiras décadas do século XXI pareciam muito mais distantes em 1968, quando Philip Dick ambientou para essa época seu livro Sonham os androides com ovelhas elétricas?. Após as mais de quatro décadas que nos separam daquela concepção futurista, vale observar que estamos vivendo no tempo histórico retratado no livro. Felizmente a catástrofe ambiental resultante da Guerra Mundial Terminal, prevista pelo autor, ainda pode ser evitada e talvez o mundo inteiro não se torne súdito das grandes e onipresentes corporações comerciais.
Nessa história, a radioatividade resultante da guerra tornou nosso planeta inabitável e todos aqueles que tiveram alguma condição de fazê-lo emigraram para as colônias extraterrestres. A terra é um lugar em decomposição, onde a poeira radioativa obstruiu o sol e envenena o ar, insalubre para os poucos que aqui restaram. Mas não foram somente colapsos ambientais que o homem fabricou, ele criou a mais maravilhosa das máquinas: o androide, uma réplica dos humanos, de eficiência indiscutível, capaz de ajudá-lo na tarefa da colonização. Porém, assim como a guerra fugiu ao controle, também com os androides as coisas não saíram como previsto. O homem acaba sempre sendo de alguma forma inferior ou impotente frente ao poder revelado pela criatura que inventa.
O livro é genial, mas não teria tantos admiradores, caso sua história não tivesse sido reinterpretada, em 1982, pelo diretor Ridley Scott em Blade Runner: o caçador de androides. A adaptação de Scott para a história original é bem livre, mas mantém o essencial, com o qual podemos acompanhar a atualização do mito literário que nos interessa – a criatura gerada artificialmente pelo homem que se torna um monstro – e compreender alguns de seus movimentos.
Livro e filme enfocam os dramas existenciais de Rick Deckard, um caçador de recompensas, cuja missão é identificar e eliminar androides rebelados. Essas criaturas são modelos muito evoluídos de robôs, fisicamente idênticos aos humanos, mas superiores a eles em inteligência e força física, chamados Nexus-6. Eles não passam de autômatos, concebidos para realizar trabalho escravo nas colônias extraterrestres, onde os homens tentam conceber um novo mundo. Porém, diferente do planejamento original, parecem ser suficientemente humanos para almejar algo além de sua condição escrava, por isso se rebelam.
No livro buscam a liberdade, enquanto no filme seu objetivo é obter mais prazo de vida, já que são desenhados para durar apenas quatro anos. O caçador, celebrizado no cinema por Harrison Ford, é uma personagem desiludida, em processo de questionar a própria humanidade e, portanto, seu direito de eliminar outros seres. O futuro projetado nessa história supõe uma humanidade que tenta descobrir-se entre os restos da destruição que protagonizou. É uma reflexão filosófica que brota como a natureza reagindo depois da neve ou de um incêndio.
Deckard é parte de uma escória social: dos que ficaram na terra contaminada, impedidos por alguma razão de comprar seu lugar em uma dessas promissoras colônias onde os humanos organizam sua nova sociedade. Aqui restam os doentes, fracos, estranhos e pobres, mas Deckard ficou preso por seu ofício de caçador de recompensas recebidas a cada androide eliminado. A volta à Terra era proibida aos androides, que eram eliminados, ou “retirados”, para usar os termos da história, em um eufemismo para sua “morte” assim que aportassem. Aqui também fica a matriz da fábrica de androides, aonde Deckard vai para validar o teste de Voigt-Kampff, que utiliza para diferenciar um humano de sua cópia quase perfeita. A insegurança, o medo de errar e matar um ser humano por equívoco assombram o detetive e sua corporação, por isso o tema dos testes é importante.
Os Nexus-6 são quase indistinguíveis do original: inclusive foram dotados de falsas memórias, lembranças de uma infância que nunca tiveram, com o qual se visava produzir um relativo amadurecimento emocional, como se tivessem vivido e aprendido algo, limitando assim sua impulsividade e agressividade. O teste Voigt-Kampff consiste em perguntas, todas elas alusivas ao horror que pode ser produzido pela perda de uma vida, seja ela animal ou humana. Todas as questões descrevem situações que mencionam a supressão de alguma vida e espera-se que um humano a detecte e tenha uma reação imediata. Por exemplo: “você encontra em uma revista a foto de uma mulher nua, seu marido gosta da foto, a moça está deitada de bruços sobre uma enorme e belíssima pele de urso”. Como os medidores não mostram mudanças, Rick pensa: “uma resposta de androide; não detectou o elemento principal, a pele do animal morto”.
Supõe-se que o androide não padeça do trauma da destruição, que torna os homens sensíveis ao tema da morte. Os replicantes possuem memórias de fatos supostamente ocorridos com eles, porém nada sabem das dores, dos erros, das frustrações que se sofre no percurso. Eles foram concebidos já jovens adultos, portanto, não experimentaram uma verdadeira jornada de crescimento que os tornaria mais sensíveis e complexos. O resultado disso é que quando tornam-se inimigos são capazes de uma crueldade impassível, desconhecendo a culpa e as dúvidas, e toda sua eficiência de máquina coloca-se a serviço da destruição do rival.
Os personagens humanos da história de Dick organizam-se em torno da valorização quase obsessiva de qualquer resto de vida que o planeta ainda possui, animais vivos são o artigo mais cobiçado do mercado mundial, comercializados por altas somas e motivo de ostentação e inveja entre vizinhos. Deckard possui uma ovelha artificial, pois a original que tivera e lhe causava muito orgulho morreu, e ele precisa do dinheiro das recompensas para substituí-la. Despreza-se por possuir um robô, mas é necessário para sua imagem frente aos outros, pois quem não cuida de um animal é considerado “imoral e antiempático”, e essas parecem ser as maiores acusações que alguém pode fazer ao outro. O desprezo pela vida, simbolizado pela destruição nuclear, foi o causador do estrago no planeta e na nossa civilização, que obrigou o homem a deixar a Terra, por isso a preservação da vida está no topo da escala de valores deles.
Os Nexus-6 nada sentem a respeito dessa conjuntura de destruição e valor da vida, por isso as perguntas do teste que busca diferenciar humanos de suas réplicas artificiais versam sobre esse tema. No teste, a ausência da dilatação da pupila, que é monitorada, denuncia que eles não conseguem emocionar-se quando provocados pelo tema da morte de homens e animais. Para o autor, o sofrimento encontra-se do lado do humano, pois os replicantes não têm como reproduzi-lo, já que não realizaram a caminhada do crescimento. Eles não passaram pela experiência de ter medos infantis, não almejaram para seu futuro fantasias e metas irrealizáveis, nunca amaram dos jeitos estranhos e impossíveis próprios das crianças e dos adolescentes, tampouco se sentiram impotentes e inúteis, como nos ocorre quando pequenos. São esses percalços do passado que nos humanizam, experiências que desembocam no que os psicanalistas chamam de “castração”, nas quais não se perde literalmente nenhum órgão, mas, sim, simbolicamente, a potência que julgávamos possuir.
A humanização neste caso pode ser traduzida pela capacidade de estabelecer uma empatia com o outro, a sensibilidade que permitirá que ele seja alguém com quem interagir e não um objeto a serviço de nossa satisfação e necessidades. Nosso histórico de tentativas e erros, de ilusões e frustrações, assim como os desejos nunca realizados tornam-nos conscientes das nossas fraquezas e por isso permeáveis ao sofrimento alheio, isso é o que nos diferencia das cópias artificiais.
O romance inicia com uma questão que Iran, a esposa de Deckard coloca sobre o “órgão de ânimos Penfield”, um aparelho onde eles podem programar seu humor conforme a necessidade da ocasião. O objetivo de tal dispositivo é manter seus usuários em um estado de ânimo favorável, sempre disposto a colaborar e a ver o lado positivo das coisas. Através dele, pode se conseguir, por exemplo, “uma posicionada atitude profissional”, existe o “inibidor talâmico, que suprime a fúria” ou o “estimulador talâmico, que a incrementa o suficiente para triunfar em uma discussão” ou, ainda, a “consciência das múltiplas oportunidades que o futuro me oferece” e um “descanso reparador e merecido”. O órgão de ânimos Penfield faz todo o trabalho que hoje se encomenda às drogas psiquiátricas, que além de sua aplicação nos quadros graves ou moderados, também são usadas para a regulação e controle de humores e a força dos sentimentos que se julga necessária para tornar a vida mais leve e viável.
Certa ocasião, Iran havia retirado o volume da televisão, que nesse livro é uma espécie de “Grande Irmão”, e acabou escutando o silêncio e os sons provenientes do prédio semiocupado, da cidade abandonada em que eles viviam. Ao invés de apavorar-se, descobriu que se sentia melhor por poder vivenciar momentos de tristeza: “compreendi que era pouco saudável sentir a ausência da vida, não só nesta casa, mas em todas as partes e não reagir. […] Então deixei apagado o som da televisão e comecei a experimentar com o órgão de ânimos. E por fim consegui encontrar um modo de marcar o desespero. O incluí duas vezes por mês em meu programa. Parece-me razoável dedicar esse tempo a sentir a desesperança de tudo, de ficar aqui, na Terra, quando todas as pessoas legais foram embora”.
Os seres humanos tinham uma existência mecânica: eram constantemente instigados a partir para as colônias, onde receberiam um escravo replicante do modelo e utilidade que escolhessem, enquanto se anestesiavam com a televisão e seus órgãos de ânimos. Esse conjunto de formas de alienação os faria parecer mais com suas duplicatas artificiais, em uma inversão de papéis, na qual são os humanos que se aproximam da cópia robótica.
A propriedade de um replicante era propagandeada como um alegre retorno à época escravocrata , “a televisão gritava: novamente os dias felizes dos estados do sul antes da Guerra Civil! Seja como um criado pessoal, ou um incansável camponês, o robô humanoide feito à sua medida, projetado somente para você e para suas exclusivas necessidades, lhe será entregue na sua chegada [nas colônias] absolutamente grátis e completamente equipado, de acordo com suas próprias especificações formuladas antes de sua partida. Esse companheiro leal, sem problemas, consistirá na maior e mais ousada aventura humana da história moderna!”
Perder a conquista da abolição da escravatura não deixa de ser uma forma de abandonar a humanidade, é necessário banir a lucidez para não perceber que subjugar o outro é uma crueldade que nos dessensibiliza. A fantasia da criatura utilizada como um escravo era explícita na criação do Golem e aqui reaparece. A escravidão foi uma tradução social da perversão de perceber o outro como mero instrumento das vontades daquele que se coloca como seu proprietário. É assim que um sujeito se iguala a um objeto, perde a liberdade de desejar, e esse é um pesadelo que assombra todo tipo de vínculo, no qual a dependência mútua sempre ameaça tornar-se uma forma de imposição e domínio de um sobre o outro. Isso vale para as relações familiares, sexuais ou amorosas, portanto, as fantasias relativas à escravidão e seus horrores ainda traumatizam, tanto aos que são descendentes dos escravos, quanto dos escravocratas, remoendo indignações e culpas, mas transcendem essa referência histórica.
O fato de que os replicantes se rebelam, matam humanos, fogem para a Terra, onde não há escravidão, e tentam misturar-se à população remanescente, é prova de que possuem vontade própria e anseios maiores do que a programação original, portanto, desejos. Isso não parece compatível com sua condição robótica, de máquina com revestimento humanoide. Revelando-se mais que isso, tornam-se também personagens trágicos, na medida em que são fabricados como coisas, nas quais brota uma consciência de si e anseios típicos de seres pensantes. É assim que se aproximam da criatura de Frankenstein, concebida para ser apenas uma experiência científica, mas que acabou cobrando de seu criador um alto preço pela existência que lhe foi imposta.

Blade Runner: o caçador de androides de Ridley Scott

No filme, dois replicantes ganham mais destaque: trata-se de Roy e Pris. O primeiro, é o modelo mais evoluído dos Nexus-6, inteligentíssimo e muito forte, destinado à guerra, um soldado cibernético; ela é bela de um modo sinistro, seus traços perfeitos de boneca, possuem os encantos de uma androide destinada ao prazer dos humanos. Eles se amam, formam um casal e lideram um motim para vir à Terra. Seu objetivo era mais complexo que o dos replicantes do livro: buscam o criador, para dele exigir um maior prazo de existência, estão desconformes com os quatro anos de validade.
O encontro entre Roy e Tyrell, o gênio que lhe desenhou a mente, acaba acontecendo. Eles indiretamente jogam uma partida de xadrez que é obviamente ganha pelo replicante, provando que esses cientistas da ficção sempre acabam inventando algo maior e melhor do que supunham, algo que foge ao seu controle e supera suas expectativas, boas e ruins. O dono da Tyrell Corporation, responsável pela fabricação dos androides, parece maravilhado ao ver sua criatura, chama-o de “filho pródigo”, exorta-o a ser grato pela excelência com que foi construído, pelos poderes que lhe foram conferidos. Porém, nada pode fazer frente à programação letal que o fará morrer no prazo determinado, ela seria impossível de reverter. Sem nenhuma gratidão ou emoção, Roy esmaga o crânio de Tyrell, literalmente destruindo a mente que o construiu, devido à sua incapacidade de inventar uma solução para sua existência terminal. Pela sua impotência frente à morte, o criador sucumbiu.
O lema da Tyrell Corporation é “mais humano do que o humano”, no sentido de ser mais capaz e poderoso. Essa é uma ilusão corrente, de que o valor de cada um é medido unicamente pelas capacidades de desempenho, pela mostra de eficiência intelectual e física, por ser linda e desejável como Pris e invencível como Roy. Eles podem ser maiores em termos de dotes, porém com certeza não são mais humanos por isso. O contraponto aos perfeitos seres artificiais é feito por Deckard, um caçador de androides sombrio, inteligente e bom de briga, mas cheio de contradições e culpas propriamente humanas.
Sendo solteiro e solitário, apaixonou-se pelo primeiro androide Nexus-6 que conheceu. Quando foi à corporação que fabricava os androides para validar o teste, Tyrell lhe sugeriu que fizesse uma contraprova: testasse em uma humana para provar a eficácia do mesmo. A candidata era Rachel, que na verdade era uma obra-prima de Tyrell, um modelo ainda mais evoluído de Nexus-6, que acreditava ser humana até que Deckard a testou e constatou ser uma replicante. De forma muito humana, a moça sofre e se entristece ao descobrir que as memórias que possuía eram meros implantes, pertencentes à história de uma sobrinha do criador. É a partir do testemunho da fragilidade e do sofrimento dela que ele se compadece e começa a amá-la.
Esse amor foi a forma de, no filme, aparecerem de forma compacta as variações do pensamento da personagem do caçador do livro, que também está sempre se perguntando o que é mesmo a vida, qual seu valor e que direito se tem de criá-la ou suprimi-la. Evidentemente, o caçador não está disposto a eliminar sua amada, o que torna a tarefa de destruir os outros replicantes mais árdua e dolorosa.
Existem inúmeras leituras desse filme, que angaria legiões de fãs, nas quais se questiona se o próprio Deckard não seria um replicante. Um final alternativo, com a versão do diretor, que na época da estreia não conseguiu impô-la, nos leva justamente nesse caminho: ele também seria um replicante. Não há nada no livro que realmente alimente essas dúvidas, porém elas não deixam de ser uma compreensão dos pensamentos conflitivos da personagem a respeito do que seria verdadeiramente ser humano. No livro, Deckard até pede a um colega que aplique o teste nele. Mas a questão da dúvida entre ser e não ser replicante é melhor que uma resposta definitiva, pois é disso que se trata, as personagens tanto do filme como do livro colocam-se questões filosóficas que no fundo levam a pensar: o que é que nos faz humanos? Qual o valor que damos à vida, por menor que ela seja, assim como de poder senti-la de verdade, mesmo que se trate de desespero. O policial de Dick começa desprezando os replicantes, para ao longo da história descobrir que lhe é muito difícil desconsiderar qualquer tipo de existência, mesmo que artificial. No filme, se apaixona por uma replicante, talvez porque eles tinham as mesmas questões, não sabiam o que eram, pensavam-se humanos e descobriram-se máquinas.
Na versão original, depois de terminar sua tarefa de eliminar os androides, encontra-se triste e frustrado, sente-se apenas um “policial de mãos grosseiras”, marcadas pela morte. No filme, ao testemunhar o discurso final de Roy e fugir com sua replicante amada, Rachel, ele revela que desborda de seu papel e resolve viver de acordo com suas dúvidas: afinal, quem sabe o que é mesmo um humano? A resposta a essa pergunta, que empresta humanidade a todas essas criaturas, independente do material de que são feitas e da intenção do criador, é que a humanidade provém do sofrimento, da inevitável experiência da castração. É fato, cuja importância aqui se ressalta, que um filho fará uma jornada de tristezas e dúvidas que seu pai não terá o poder de impedir, por mais que nunca eles perdoem um ao outro por essa indigesta realidade.
Talvez a melhor prova da humanidade dos replicantes seja esta cena final do filme, onde o que Roy pede é que algumas de suas memórias sobrevivam depois da morte. Após a luta final, na qual a supremacia de Roy é indiscutível, Deckard é mantido vivo por ele, que sabe estar prestes a morrer. Quer que seu rival escute as últimas palavras e testemunhe sua morte: “Eu vi coisas que vocês humanos nunca acreditariam. Ataquei naves em chamas nas bordas de Orion. Observei Raios-C brilharem na escuridão dos ares dos Portões de Tannhauser. Todos estes momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. A humanidade retratada nesse fim de existência é indiscutível, dele se conclui que é impossível dar vida a uma criatura que não faça reivindicações nem tenha expectativas humanas, e também que é a consciência da morte que dá a gravidade da vida.
Por mais que queira fabricar alguém muito maior do que ele mesmo, cada pai, como Tyrell constatou de forma letal, acaba gerando apenas mais um humano. A declaração na hora da morte de Roy denota uma capacidade de perceber a força das experiências que teve e o anseio por vê-las reconhecidas, por compartilhá-las. Essa cena faz do replicante uma criatura bem diferente de um robô, um autômato sem emoções. A vida mecânica das máquinas, neste caso está mais próxima do que Dick descreveu como aquela que os humanos estavam levando nas colônias extraterrestres: autômatos escravocratas, anestesiados, incapazes de julgar e sentir, manipulados pelas corporações.
A expectativa de fazer de um filho algo mais próximo dos replicantes perfeitos e eficientes, à medida das necessidades dos pais, projetado conforme seus desejos é parte intrínseca da paternidade. O desejo primeiro dos pais é de que a criatura que se gerou possua apenas as potencialidades, sem a parte das emoções, da impotência e do sofrimento, que são intrínsecos da infância e crescem com o indivíduo, ou seja, esperam que o filho viva para o sucesso e a satisfação. Por isso, qualquer pai necessariamente ficará abalado ao ver um filho sofrer, e tantas vezes, constatamos na clínica, opta por afastar-se dele para manter intacto seu ideal.
Como todo criador que não compreende a complexidade de sua criatura, Tyrell sucumbiu ao crescimento dela. Não da mesma forma como ocorreu com os rabinos que deixaram o Golem crescer demais, restrito ao gigantismo físico, mas exatamente como o cientista Frankenstein, que viu no monstro que criou apenas uma experiência e esperava que ele se ativesse a esse limite. A criatura de Shelley avolumou-se em sensibilidade, humanizou-se e dirigiu-se a Frankenstein exigindo-lhe mais. Daquele que considerava seu pai, esperava que fosse mais poderoso, menos covarde, consequente e responsável por seus atos do que demonstrara ser. Já os seres criados por Tyrell também o procuraram para cobrar mais: queriam que ele completasse a perfeição de sua obra: se eram belos, inteligentes e fortes, porque durariam tão pouco?
É o feitiço voltando contra o feiticeiro: inicialmente foram os pais, neste caso os criadores, que se desiludiram. Eles esperaram muito de sua experiência e viam na perfeição de suas criaturas nada mais do que a comprovação de sua inteligência e poder, mas acabaram sendo eles os acusados pelo desencanto dos filhos. Ao invés da insatisfação do pai, é a do filho que cobra seu preço.
No livro de Shelley, em um momento de arrebato, quando estava empolgado pela experiência, antes de realizá-la, o doutor Frankenstein passa bem a ideia do quanto essas criaturas foram planejadas para serem escravas do desejo e instrumentos da realização de seu criador: “uma nova espécie me abençoaria como seu criador e sua origem; muitas criaturas felizes e excelentes passariam a dever sua existência a mim. Nenhum pai podia reclamar a gratidão de um filho tão completamente quanto eu daquelas criaturas”. A megalomania das fantasias do cientista, tão distantes da realidade do ser monstruoso e carente que animou, dão a medida exata do contraste que a paternidade vivencia entre o filho nascido e a idealização que o precede. Não somente os poderes e capacidades daquele que se gerou não correspondem ao ideal, mas também os atributos do pai, que esperava ser tão reverenciado e reconhecido em sua grandeza, tampouco estão de acordo às expectativas.
Em um livro fundamental para pensar o tema, Carta ao pai, o escritor Franz Kafka reclama de seu pai principalmente a pretensão de que o filho lhe seja grato e a soberba com que conduziu sua educação: “você era para mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado, não no pensamento, mas na própria pessoa”. Kafka se considera sempre abjeto, um verdadeiro inseto frente à grandeza que o pai atribui aos próprios atos, cobrando uma admiração que o filho não conseguia sentir por ele. Porém, o que para o pai era motivo de queixas e acusações, para o filho era gerador de culpa e autodepreciação. A cobrança feita pelo pai é mais forte do que a contrapartida, pois a ascendência dele sobre o filho, cuja subjetividade ainda está em formação e é dependente dele, é maior do que as recriminações que possa receber.
Frankenstein teve a vida destruída e Tyrell o cérebro esmagado pela indignação dos filhos destes criadores frente à impotência dos pais, que se revelaram incapazes de oferecer-lhes o que eles precisavam e desejavam. Assim como um pai está disposto a afastar-se de um filho que se revele tão tristemente humano, esses filhos pretensamente perfeitos ou que encarnavam ideais monstruosamente grandes, estão dispostos a perseguir e matar seus limitados pais.
Existem muitas outras criaturas como a de Frankenstein soltos pela literatura, por exemplo, o desmemoriado espião Jason Bourne, transformado em uma máquina de matar. Ele se vê no mundo sem saber seu nome, nem de onde vem e quais são suas habilidades. Aos poucos se descobre um soldado hipertreinado, praticamente invencível, capaz de lutar com qualquer arma em qualquer meio, enfim, um homem acima das capacidades normais. Descobrimos que fora despersonalizado para poder matar sem remorsos, fazia parte de um projeto do governo de fazer assassinos perfeitos para usos políticos. Mas algo deu errado: em um desses assassinatos, uma fresta de sua antiga alma o fez vacilar, isso o abala e ele não encontra a antiga estrutura para se apoiar. Transforma-se em um ninguém que sai em busca de seu passado e de quem lhe fez ser o monstro (no sentido da insensibilidade assassina) que é. Obviamente, como costuma ocorrer com essas criaturas artificiais, moldadas pela pretensão de um homem, depois de longa busca, mata seu criador. Este também o buscava para matá-lo, pois ele era um projeto que deu errado e esse erro trouxe várias consequências desastrosas, em uma história que, embora protagonizada por um humano, aproxima-o da de Frankenstein e de seu monstro.
Mas a questão é que todos nós somos um pouco como a criatura inventada por Mary Shelley: rebelamo-nos nos momentos que percebemos a influência paterna, que inevitavelmente recebemos, como algo que nos foi imposto e consideramos que o que ele espera é muito maior do que o pouco que se dispôs a dar. Ingratos, na visão do pai, na verdade nos mostramos incapazes de suportar suas expectativas, seus sonhos onipotentes projetados em nós, tão tristemente humanos.
Facilmente transformamos nosso legado em paranoia, quando os desejos e desígnios de nossos pais, algo sem o qual nada seríamos, nos parecem uma ordem, um imperativo. Frente a isso, passamos a desejar que ele desapareça, saia do nosso caminho, e assim fazemo-nos, em alguma medida, parricidas. Não podemos acreditar nesses filhos monstruosamente paranoicos, pois, ao mesmo tempo em que acusam o pai de não ser suficiente, não falam de outra coisa do que na grandeza que seu pai deveria ter. É uma espécie de contraste com a fantasia de não ser filho de ninguém, em um verdadeiro delírio de autonomia, que notamos em certos sujeitos. O pai não tem saída, ou está de mais, ou está de menos, o certo é que nunca acerta a mão. A paternidade é esse exercício exaustivo de colocar-se em um lugar onde as grandes expectativas, que é preciso ter, se encontram com seus limites. O desafio é equilibrar-se nesse limiar.

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