Rir é o melhor remédio

Resenha do livro Seria trágico se não fosse cômico, Humor e Psicanálise

Em 2005 comemoramos o centenário de uma obra freudiana, tão essencial quanto negligenciada, Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Para fazer justiça a ela, um grupo de psicanalistas resolveu comemorar da melhor maneira: um livro que resgatasse a importância do tema. Assim nasceu: Seria Trágico se não fosse Cômico – Humor e Psicanálise, uma coleção de ensaios organizada por Daniel Kupermann e Abrão Slavutzky, pela Editora Civilização Brasileira. E o time ainda conta, entre outros, com Samuel Katz, Edson de Sousa, Joel Birman, Luís Claudio Figueiredo, Maria Rita Kehl, Renato Mezan, e desenhos dos chargistas Aroeira e Santiago.

O resultado é um livro acessível, que retoma a importância da obra homenageada, atualiza seus pressupostos e ainda questiona certos caminhos que a psicanálise tomou em conseqüência de não tirar dessa obra toda a radicalidade possível. A figura do analista enquanto um ser apagado, de poucas palavras, impassível, não está no projeto freudiano original. Ela é mais um subproduto da estratégia de concessões que acabamos fazendo para facilitar nossa aceitação social. Em nossa defesa podemos alegar que o que temos a dizer, em geral, não é lá muito simpático e não foi difícil supor que com uma certa aura de respeitabilidade, ao estilo médico, nos levariam mais a sério. Encarnamos então a esfinge do saber com seu terno cinza e rosto fechado. Seja como for, pagamos caro por essa opção, tanto que nos perdemos de nós mesmos e pior, abrimos mão dum instrumento que pode ser mais efetivo justamente por ser transgressivo: o humor.

O humor, tal qual entendido por Freud, é sempre uma maneira de lidar com o recalque, com o que não pode ser dito de outra forma. É uma maneira de enunciar uma verdade que tem seu caminho bloqueado. Por exemplo, o grau de liberdade de cada lugar pode ser medido pelo humor permitido. Logo, o humor é do maior interesse para os analistas, já que estamos sempre às voltas com o que é varrido para baixo do tapete, com o que é dito na entrelinhas. Mas não foi essa a nossa história, socialmente somos sem graça e isso não foi sem repercussões na técnica analítica. Por sorte nem todos os analistas caíram nessa cilada, Lacan tinha o maior apreço por esse escrito freudiano e usava o humor para interpelar pacientes e discípulos. Winnicott era direto: dizia que se alguém não tem senso de humor simplesmente não serve para ser analista.

Por nossa prática sabemos que se o paciente tem senso de humor, salvo raras exceções, o trabalho analítico anda mais rápido, estamos diante de alguém que tem uma flexibilidade maior no pensamento e uma certa leveza com a vida. Mas cabe a nós introduzi-lo? Na verdade não temos muito controle sobre essa questão, uma interpretação pode levar ao riso sem que tenhamos a intenção, depende do estilo do paciente. Por outro lado, em certos momentos uma piada pode valer como uma interpretação e o que entra aqui é o estilo do analista. A questão é que uma piada pode ser um caminho ao inconsciente, então seria lícito usá-la?

Vamos a um exemplo. Quando morava no interior escutei uma história que pode ilustrar o que vale o humor. Havia um senhor ilustre e querido na cidade, mas não sabia lidar com dinheiro. Estava sempre inventado novos negócios e ia de fracasso em fracasso. Naquele momento estava plantando kiri, era o início do ciclo do reflorestamento do estado, quando se começou a plantar eucalipto e pinus. Pois bem, o kiri foi o que não deu certo. Mas nosso empreendedor não desistia, já bolara um novo negócio para se ocupar. Um dia entra no café da cidade, e vocês sabem que numa cidade pequena o coração dela bate no café, e anuncia aos amigos sua próxima empreitada, iria montar um haras. Ao que um amigo prontamente lhe sugere um nome para o negócio: Haras Kiri.

Ora, o que o amigo lhe diz é mais do que uma tirada de espírito, é uma interpretação da sua tendência a jogar dinheiro fora, e, de uma maneira alegórica, matar-se aos poucos. A si ou a seu patrimônio, os quais, simbolicamente, costumam se equivaler. O efeito na cidade foi de humor, a piada correu, o que garantia esse efeito é fato de que todos conheciam as insistentes trapalhadas financeiras do cidadão. Mas se fosse um analista que estivesse escutando o nosso empreendedor trapalhão, o que fazer? Deveria didaticamente explicar-lhe sua compulsão ao fracasso ou fazer uma interpretação como essa que colocasse a pulsão destrutiva a nu? Difícil decidir, mas a clínica nos mostra que para desamarrar certos sentidos, é preciso usar-se de um certo golpe de espírito, como uma piada que irrompe, surpreende e por isso faz rir. O humor tem esse momento prévio ao riso, onde aconteceu algo que produz um efeito forte, inevitável, por isso a interpretação psicanalítica assemelha-se a ele. É preciso surpreender, suportar a reação, que pode ser de riso, raiva, choro, pasmo e depois dar conta do que foi que ocorreu.

Moral da história, compre o livro e desconfie dos analistas com pose de sério, uma análise pode ser sofrida, mas uma boa interpretação pode ser muito divertida. O progresso de uma análise é de difícil mensuração, mas não levar seu sofrimento tão a sério e poder voltar a rir são índices confiáveis.

Publicado no Jornal Zero Hora, Caderno de Cultura, 26 de novembro de 2005.

26/11/05 |
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