Tinha que ser o Mário!

Prefácio para um livro do Santiago

O Santiago todos conhecem. Aprendemos a identificar seu traço e seus personagens que nos aproximam do gaúcho que um dia fomos, nem que seja nos pagos da imaginação. Nesse livro, o seu lado de folclorista é que se agranda. Disfarçado de bom humor, o autor faz um apanhado sério, quase um dicionário de empulhas, essas perguntas e respostas chistosas de conteúdo quase sempre sexual.

Nosso gaúcho ancestral sempre valorizou a palavra e o duelo verbal, a resposta rápida e certeira era sinal de sabedoria e virilidade impositiva. A cultura era sobretudo oral, então as frases de espírito e os ditos eram a síntese da sabedoria da época. A trova era a forma maior e artística dessa agressividade verbal enquanto a empulha seu lado menor, um treino para os embates maiores. Digamos que a empulha é o estágio preparatório para a trova. Mas ela é mais que isso, pois embora a maior parte de nós não se dedique à arte da trova, não há macho que não necessite da resposta na ponta de língua e que não precise saber fazer uma provocação digna da sua macheza. Ser homem no interior é saber tirar com a cara do outro sempre que possível, e é também saber rebater uma empulha. Portanto, pelo menos aqui nos pagos, a empulha é estágio pra ser homem, faz parte dos ritos de iniciação do macho gaudério.

Érico Veríssimo nos deu uma imagem inesquecível da importância do duelo verbal. Quando Rodrigo Cambará entra pela primeira vez em Santa Fé apeia na frente dum bolicho, entra dizendo: -“Buenas que me espalho, nos pequenos dou de prancha nos grandes dou de talho”. – “Pois dê” responde Juvenal Terra, já puxando um punhal. Um desaforo desses não se levava para casa naqueles tempos. Rodrigo recua e diz que era de brincadeira, e que já está cansado de guerra. Desfeito o mal estar esses homens vão se tornar grandes amigos, mas só depois de mostrar um ao outro que podiam se enfrentar, que não tinham medo de sangue, que eram iguais na valentia. Esse era o gaúcho, sempre atento ao que era dito, pois existir socialmente passava por se enfrentar também com palavras.

O trabalho folclórico costuma começar quando certas formas estão ameaçadas de extinção, será esse o caso desse livro? Será que a urbanização e a linguagem pasteurizada pela TV vai matar essas manifestações de galpão? Difícil dizer, a agilidade verbal está presente em outras manifestações da cultura popular. Mas nesses duelos gaudérios, ou sua versão iniciática, a empulha, há um elemento importante, pelo qual valeria a pena sua preservação, pois é de grande utilidade pública: sublima e ritualiza a agressividade entre os homens. Enquanto pudermos gingar com as palavras, numa dança de frases, de tiradas de espírito e de provocações cheias de humor, com certeza não precisaremos matar ou ferir para provar a que viemos. Pois se o gaúcho é aquele cara aparentemente tosco, que não teria o jogo de corpo, nem a malícia de que se orgulham os outros habitantes do Brasil, é na força poética e humorística de suas trovas que ele mostra que é também artista.

As prendas é que ficam meio assim com as empulhas, afinal, isso é coisa de macho e não se fala essas coisas na frente delas. Não é que mulher seja um espécime pacífico da raça humana. Entre elas, são capazes de tiradas, observações sutis ou ditos de aparente inocência, mas que são um verdadeiro cavalo de tróia, contendo um exército de maldade em seu interior. Se a empulha carrega nas tintas da competitividade masculina, já as mulheres, entre um beijinho estalado e outro, não deixam a desejar em termos de provocações mútuas, fininhas como agulhas, porém certeiras. Talvez na grossura do macho, sem querer, mas fazendo, puxar a brasa para a nossa sardinha, há mais gozação do que violência, pois qualquer coisa fica mais leve com as tintas do humor. Portanto empulha é coisa de homem, do tipo grosso, de fala chula, sem papas na língua, mas de grande coração…

Mas não podemos esquecer que a empulha tenta estabelecer uma virilidade para cima de um igual, ou seja, o outro e semelhante pode servir, ainda que imaginariamente, como objeto erótico. Aqui, talvez haja uma dimensão de homoerotismo velado…

Santiago! Larga essa faca vivente…

Prefácio para o livro “Conhece o Mário? Pequeno e Utilíssimo Dicionário de Empulhas e Pegadinhas” , de Santiago, L&PM Pocket 2006
19/01/06 |
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