Ventre livre, quanto falta para isso?

Ventre livre, quanto falta para isso?
Até quando viveremos num país com religião, nem diria oficial, mas sim ditatorial? As dificuldades de manter, assim como de interromper uma gestação (detalhadas aqui) devem ser levadas em conta, mas a liberdade é uma premissa!

É incrível nosso atraso em  insistir na proibição do aborto e em permitir que argumentos de caráter religioso se imiscuam na vida de quem não lhes partilha as crenças. Quando finalmente viveremos em uma país sem religião, não diria oficial, mas sim ditatorial? Neste momento, envolvidos com o perigo da contaminação das gestantes com o Zika vírus, discute-se seu direito a abortar, caso não se sintam em condições de criar um filho com as sequelas que sabe-se ocorrerão no feto.

Criar um filho é uma missão quase impossível, mas mesmo assim homens e mulheres se lançam em seu encalço, dedicando a maior parte dos esforços de sua vida para fazer tudo dar o mais certo possível. Tal jornada só tem chance de sucesso se os envolvidos estiverem engajados nisso até a raiz dos cabelos, até os ossos!

Uma criança com problemas de desenvolvimento encontra uma família mais exigida ainda: terá que suportar o desencontro entre os ideais sociais e aquilo que seu filho conseguirá cumprir, serão criadas metas de acordo com suas possibilidades e se aprenderá a valorizar e amar a trajetória específica dessa criança. Isso após superar o luto pelo filho idealizado que definitivamente não nasceu.

Imagine então toda essa operação quando alguém decide não enfrentar esse desafio e é obrigado a fazê-lo. Na prática estamos, sempre, falando de mulheres humildes, pois o aborto existe enquanto possibilidade para aquelas que puderem pagar por ele.

Ninguém é entusiasta do aborto, mas qualquer um que já trabalhou em saúde pública sabe que ele é uma sofrida realidade que envolve milhares de mulheres, e sermos contra ou a favor praticamente não interfere na maioria das condutas.

Quando acontece, o aborto é uma das mais sofridas experiências na vida de uma mulher. Desde o início da fecundação, ela vê-se tomada de manifestações físicas e psíquicas que impactam totalmente sua existência: sua atenção e sono ficam alterados, seu corpo muda de formas quase imediatamente, é como um país invadido por outro que altera e interfere na cultura da nação sitiada.

Quer tenha sido fruto de um acidente, do descuido irresponsável ou de um desejo, uma fecundação sempre será significativa, restará como um evento que assumiu uma magnitude inusitada, no qual uma relação sexual torna-se potencialmente um destino. Por isso, sua interrupção será para sempre uma encruzilhada inesquecível na qual se escolheu uma das vias.

Esse evento fará aniversário, será uma marca na existência, um divisor de águas. Justamente por isso não se pode tratar do tema como se fosse apenas um dilema moral, mais que isso, é uma questão de liberdade pessoal, de autonomia, e só deveria assumir uma dimensão pública por demandar atendimento de saúde.

Na prática, para aquelas que decidem que não querem ou não podem manter uma gestação abre-se um calvário, onde serão maltratadas pela clandestinidade dos métodos, pelo silêncio punitivo de todos, justamente quando estão frágeis e precisariam ser apoiadas e escutadas. Imagine o que significa para uma mulher sentir todas as transformações, sofrê-las durante semanas, grávida de um filho que não deseja ter, passar pela intervenção cirúrgica do aborto, elaborar a decisão tomada, sangrar e sentir dores, tudo no mais completo isolamento.

A fecundidade não se alinha totalmente com a condição e o desejo de ser mãe. Deslizes acontecem, por culpa do inconsciente ou da natureza, mas muitas vezes eles não habilitam para a jornada da maternidade. Para um filho dar certo a mulher precisa escolher. Por lei, ela precisaria ter seu ventre libertado da imposição de procriar.

Dizem os pastores do rebanho de Deus que os embriões a Ele pertencem, se houve uma fecundação foi porque Ele assim o quis. Portanto uma vida pouco deveria aos pais que apenas reproduziriam conforme os desígnios do criador. Nessa lógica não precisamos perguntar em nome do quê resolvemos cometer esse ato tresloucado de gerar outro ser humano. Pena que ele vai ser mais à imagem e semelhança das nossas tentativas de acertar e das inevitáveis trapalhadas do que do Criador.

Nos debates sobre a legalização do aborto, além dos dilemas éticos sobre quando começa a vida, e quem tem direito sobre ela, fica omitido um fato: não conseguimos realmente dar vida a um filho que não desejamos. Somos pouco magnânimos, incapazes de um amor que não nos venha a calhar. Queríamos ou não, é assim que as coisas acontecem.

Eu não pedi para nascer! Dizem os adolescentes, quando os pais ficam querendo se demitir do trabalho que eles dão. Às vezes é preciso lembrá-los da responsabilidade que contraíram. A educação de um filho não acaba quando a criancinha mimosa dá lugar ao cara chato, volumoso e argumentativo em que todos os filhos se transformam.

Por outro lado, crescemos quando descobrimos que é inútil colocar nos outros a razão de todas nossas mazelas e nos dispomos a assumir a autoria de nossos feitos, os direitos e os avessos. É aí que nos habilitamos a ser pais, pois como é que vamos cuidar de alguém enquanto nem de nós nos incumbíamos?

Ser pai ou mãe é uma missão quase impossível, que requer todos os recursos, inclusive aqueles que desconhecíamos que tínhamos. Nos cabe ensinar o que não sabemos, proteger quando nos sentimos desamparados e amar prevendo uma separação. Simples assim. Não é tarefa para se entrar de costas, por isso um filho francamente indesejado ou totalmente inoportuno será abandonado, negligenciado ou enlouquecido.

O desejo por um filho não é de um jeito só, ele pode ter inúmeras conjugações e todas elas funcionam de alguma maneira. Há ocasiões em que nasce alguém que chega cedo demais ou tarde demais, que é fruto de uma relação muito jovem ou que já acabou, conseqüência da vontade de um, mas não do outro, enfim, variações que demonstram que querer um filho é algo que pode ser escrito por linhas tortas e em geral o é.

O que essas histórias têm em comum é que alguém envolvido no acontecimento de uma gravidez, de alguma forma está disposto a bancá-la. Mas não é sempre assim, por outras vezes descortina-se a previsão de um pesadelo, um sentimento de portar um Alien, que destruirá a vida da mulher ou do casal, invadidos por um fato que não têm condições de sustentar. Nesses casos, o aborto é um direito de interrupção de algo que adoeceria a todos os envolvidos. Quando há escolha, torna-se mais responsável a relação com cada gestação mantida. Filhos assim nascidos podem não ser divinos, mas ainda são maravilhosos!

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