ADOLESCÊNCIA E REDES SOCIAIS

PARTE 2 do capitulo “Nativos digitais”, do livro “Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la” Aberto ao público para ajudar no debate sobre a imersão de nossos jovens confinados em seus meios digitais de existir

Achados e perdidos nas redes

“O que você faz tantas horas no Facebook?” Quando as redes sociais chegaram, os adultos faziam essa pergunta a seus adolescentes. Soava-lhes incompreensível: como se podia passar tanto tempo ali, fazendo o quê? Com quem? Com o tempo, muitos desses adultos acabaram entendendo por ter a mesma experiência.
Além da óbvias funções de comunicação, especialmente de divulgação da própria vida e de investigação da alheia, as redes sociais constituem, sem dúvida, a forma hoje mais à mão para o exercício da distração. Elas servem para ausentar-se de aulas, reuniões, eventos de família ou de qualquer outro ambiente em que se esteja, assim como para adiar tarefas de estudo ou trabalho.
Gerações de pais, anteriores à revolução digital, já resmungavam sua irritação frente à compulsão dos jovens para manter-se em contato e fugir dos deveres. Não foi a internet que inventou isso, apenas, o que não é pouco, tornou portátil o contato compulsivo com os pares a que tendem os adolescentes. Décadas antes, falavam a tarde inteira ao telefone com amigos ou namorados com quem passaram a manhã na escola. Não é novidade a necessidade sempre premente de encontrar-se e ficar todo o tempo possível apenas entre os pares. As redes sociais trouxeram um elemento a mais: o ambiente digital, no qual o adolescente parece estar só, mas está permanentemente acompanhado, embora, visto de fora, o contato pareça abstrato e irreal.
Os adolescentes conectados comunicam-se em tempo real: o vivido é narrado e partilhado imediatamente, independente de onde estejam. Falam entre si como se estivessem no mesmo recinto, enviam as imagens do local e mostram uns aos outros objetos e companhias, de tal modo que uma conversa pode envolver vários cenários e grupos. Nesse caleidoscópio de imagens e narrativas, observam-se uns aos outros como ocorreria em uma rua ou pátio de escola. Constitui-se, portanto, de fato uma outra forma de convívio.
Independente do que estiver ocorrendo, quer seja na aula, no trabalho, em família, durante um deslocamento, passando um tempo ao lado dos amigos ou até mesmo da pessoa que amam, talvez não consigam prestar toda a atenção na realidade. Para tanto teriam que desprender-se do aparelho que os mantém conectados com outras pessoas. Por vezes, ficam comunicando-se ininterruptamente com seus pares, por outras apenas passeiam dentro desse ambiente, que parece mais protegido e menos chato do que o do lado de fora.
As redes sociais tornaram-se ágeis ferramentas de comunicação, porém nem sempre quem entra nelas pretende estabelecer algum contato. É comum passar-se longos períodos em mero percurso errático entre perfis, investigando seus laços e características. Em geral essas buscas têm como mote indagações sobre amores que se quer conquistar, que se perdeu ou que se teme perder, seguidamente são motivadas por ciúmes. Também amizades possessivas ou rompidas motivam esse tipo de investigação, além de percursos aleatórios, movidos pela simples curiosidade de conhecer e compreender a intimidade alheia.
Isso pode ser similar a uma espécie de fantasia ficcional emprestada, quando o caminho é guiado pela história de uma pessoa ou um grupo, sendo levado por essas personagens como se fosse um filme, um livro ou os labirintos de um game. Mas também equivale a andar à deriva, zapeando. Zapear, é um jeito de ir a lugar nenhum podendo ir a todos ao mesmo tempo, talvez uma forma de expressar insatisfação através do uso do controle remoto. O gosto não está em ver alguma coisa, trata-se de exercer o direito de escolher, ou melhor, de não escolher nada do que é oferecido e continuar usufruindo do prazer das ofertas. É importante observar que para os usuários da televisão, chega uma hora em que os canais acabam e aquele que zapeia precisa recomeçar seu ciclo, já para quem faz isso na internet, seus caminhos são infinitos.
O tempo dispendido nas redes sociais recria esse hábito bastante difundido de ficar mudando de canal sem assistir nada, viajando entre pedaços de filmes, propagandas, frases, cenários, gestos e rostos desconexos. A princípio, a rede social pareceria uma oferta pouco variada, pois são apenas páginas contendo informações sobre pessoas produzidas por elas mesmas, que interesse poderiam ter? Quantas vezes vocês já escutaram uma frase como esta: “Fico olhando as páginas dos meus familiares, depois vou nas dos seus amigos, nos amigos dos amigos, quando vejo já é de manhã…”. O que parecia uma incomum prática adolescente, foi aliciando gente de todas idades. Essa forma sistemática de espiar a vida alheia é similar ao hábito das pequenas comunidades, conhecido como fofoca, no qual conta-se histórias de pessoas, com as tintas mais vibrantes possíveis visando o interesse do interlocutor. No caso das redes sociais, a edição da vida visando aumentar o atrativo e a visibilidade, é tarefa do próprio sujeito.
O Facebook, como seu nome retirado dos anuários de fotos dos alunos sugere, inaugurou-se tendo como alvo o contato entre estudantes e a busca de popularidade. Na verdade, em sua primeira versão, criada por Zuckerberg em 2003, não passava de um catálogo de estudantes de Harvard, principalmente do sexo feminino, a serem avaliadas e categorizadas pelos rapazes quanto a seus atrativos sexuais. Como uma febre, houve adesão maciça de extensas comunidades universitárias norte-americanas, que tomaram de assalto o programa inventado pelo jovem Mark, utilizando-o para comunicar-se, seduzir-se e informar-se uns sobre os outros. Essa rede, onde o prestígio dependia da aparência, foi ampliando-se até assumir sua identidade empresarial e a intenção de possibilitar contatos e gerar informações úteis aos cidadãos, negócios e estados. A expansão não precisou de muito esforço: voluntariamente ao redor do mundo as pessoas foram entrando no que inicialmente era um círculo de eleitos.
Até hoje essas ferramentas de comunicação digitais baseiam-se em galerias de faces, além de que fotografar-se e divulgar a imagem em algum tipo de rede social tornou-se uma obsessão adolescente. Mostrar-se sorrindo ou fazendo alguma careta típica do momento, dar notícias da atividade em que se está envolvido, com quem, o que se está se pensando e sentindo, é uma prestação de contas voluntária e cada vez mais compulsiva, aparentemente dirigida a um olhar global e onipresente. Talvez o objetivo seja bem mais restrito e antigo: a formação de uma comunidade de referencias mútuas.

Saudades da aldeia

Paradoxalmente, o motivo pelo qual os jovens possuem extensa rede social nas comunidades virtuais quiçá não seja exatamente uma novidade, mas sim uma espécie de retorno à forma antiga de funcionamento para a qual nosso cérebro sempre foi apto. Claro, não é da mesma forma, mas ainda trata-se do uso da capacidade social de situar e sentir-se à vontade em uma ampla rede de pessoas com diferentes pesos de significação. Isso se considerarmos do ponto de vista evolutivo, pois temos milênios de vida em grupos. Já do ponto de vista histórico mais recente, poderíamos ver algo semelhante: as redes sociais simulam a antiga aldeia, uma comunidade onde todos se conhecem e partilham informações.
A geração dos autores deste livro, assim como a de seus pais, cresceu habituada a conviver com o temor dos mais velhos relativo ao “que os outros vão dizer”. Tinha-se praticamente duas vidas: dentro de casa ocorriam conflitos e viviam-se dificuldades, enquanto frente aos parentes, vizinhos, colegas ou fiéis da mesma paróquia fingia-se ter uma família, um casamento, filhos e uma carreira perfeitos. O temor de ficar mal falado, assim como o empenho em fabricar uma imagem pública respeitável, motivava brigas familiares e críticas aos filhos adolescentes que se deixavam ver em comportamentos julgados condenáveis. Portanto, editar a própria imagem e a vida que se tem de modo que pareça melhor do que ela é não constitui nenhuma novidade.
O fato de vivermos em uma sociedade individualista, onde cada um se orgulha da sua imparidade e renega suas origens, não quer dizer que não tenhamos saudades das antigas formas de convívio. Quem sabe as redes sociais nos apontem o esgotamento, a pobreza, ou uma insuficiência das formas contemporâneas de estarmos – ou melhor, não estarmos – uns com os outros. Talvez elas constituam uma crítica espontânea e ingênua ao individualismo. Enquanto julgamos mal os usuários pela suposta superficialidade da conexão com seus amigos da rede, deixamos de ver a intenção de criar algo novo em termos de laço social, ou mesmo de retomar de algum modo a vida comunitária que está fazendo falta.
Do ponto de vista histórico, o número de pessoas que conhecemos durante a vida mudou muito. Vivemos em uma sociedade urbana que nos propicia contato com muita gente, mas com poucos deles temos laços significativos. Sabemos e temos informações sobre nossa família, que é cada vez menor, além de alguns poucos amigos eleitos. Frequentamos muitas pessoas, mas de poucas retemos informações significativas como o nome, filiação, aspectos do caráter e trechos de sua vida. Já não gastamos muita energia arquivando histórias de pessoas aleatórias, suas qualidades, seus defeitos. Em um passado não tão distante isso operava ao avesso: as sociedades tradicionais tinham a vida social em grande conta e as informações sobre os indivíduos que delas faziam parte eram cruciais, isso era o assunto principal e conhecimento insubstituível para se dar bem. Pouca gente, muitos detalhes, inverso à diversidade urbana, constituída de multidões de desconhecidos.
Do ponto de vista evolutivo, somos uma exceção recente no longo percurso do homem, caracterizado pelos fortes laços aos parentes, aos vizinhos e às amizades. A relevância atual das redes sociais certamente resgata a memória e os recursos cognitivos desse momento histórico anterior ao nosso. Nosso cérebro foi moldado, e assim funcionou durante a maior parte do tempo, em sociedades tradicionais, ou seja, conectado a uma complexa rede social, onde sabíamos tudo de todos. Ainda mais se considerarmos que havia um funcionamento distinto em relação aos mortos, pois eles não eram esquecidos, eram honrados e frequentemente lembrados em rituais. Portanto além do carrossel de nomes dos vivos, as gerações mortas também contavam no acervo da memória e tinham que ser mencionadas. Logo, evoluímos como espécie guardando um grande número de nomes, agregados ao lugar social de cada indivíduo.
Portanto, do ponto de vista evolutivo, tornamo-nos anômalos em relação ao que fez a aventura humana. Nossas capacidades sociais pareceriam atrofiadas se comparadas às sociedades de épocas anteriores. Somos introspectivos e solitários, aparentemente dependemos menos da aprovação alheia, já que os outros são genéricos. No entanto, a rede social pode fazer um semblante desse convívio quando alguém necessita desse olhar externo. Poderíamos supor que nossos jovens hiperconectados estejam buscando caminhos para a retomada dessa herança social: a vida em comunidade.
Se há uma questão a ponderar, visto que estamos lidando com fenômenos em transformação, seria sobre os efeitos dessa modalidade de oferta de contatos sociais. As redes dão oportunidade de estender alguma sociabilidade até níveis impensáveis, talvez maiores do que nossa verdadeira capacidade de estabelecer qualquer tipo, mesmo que muito remoto, de vínculo. Frente a isso, torna-se uma questão saber até que ponto estamos constatando a construção de algum tipo de tecido social e quando isso transforma-se em uma massa amorfa, um simulacro de sociabilidade. Questões para as quais ainda não temos respostas, afinal, frente a novidades das redes, somos criadores e cobaias ao mesmo tempo.

Tudo é falso

Uma das acusações mais corriqueiras é que nas redes todos são lindos, bem sucedidos, amados, felizes e estamos em um imenso feriado com sol. Ou seja, usaríamos uma fachada falsa para nos descrever. Isso é certamente verdade, mas quando não é assim? Na vida real faz-se propaganda de si mesmo o tempo todo, não mostramos nosso lado B, somente o A. Claro, existe uma exceção, os deprimidos: esses tampouco são autênticos, tentam constantemente provar aos outros que não valem nada, fazem o movimento contrário.
Somos seres sociais, precisamos uns dos outros, o prestigio é o nossos oxigênio, por que as redes sociais funcionariam de forma diferente? Diríamos apenas que essa construção da imagem ficou um pouco mais acentuada, mais explícita, os adultos de outrora fingiam não fingir. Como tudo fica registrado, visível, recortado e editado, as máscaras ficam mais à mostra para um olhar acurado. Somos mais caricaturais na rede, provavelmente pela não presença real do outro. Nosso “ego de domingo” expande-se mais fácil e ridiculamente por não encontrar limites. Talvez sejam dificuldades intrínsecas a um meio que ainda é rudimentar relativo ao que pode tornar-se, e recém começamos a usá-lo, somos todos novatos.
Por vezes vemos usar a palavra vício para descrever o uso abusivo das redes sociais. Pessoas que trocam a vida real pela virtual, concordamos, mas quem fez isso já tinha problemas na vida real. O vício no caso é em uma sociabilidade, tão mais compulsiva quanto falsa. São pessoas com dificuldade de contato, por medo ou falta de habilidades para relacionar-se, que usam a rede social para simular para si mesmas uma sociabilidade que era incipiente, nunca existiu ou perderam.
Ninguém que tenha uma boa rede real se limita à rede social digital. É justamente quando há essa falha na vida, que abre-se a porta para o excesso, tornando-se uma obsessão para aqueles que possuem uma existência desertificada. É interessante observar, que entre os que têm buscado sistematicamente no mundo digital uma compensação para a própria incapacidade de socialização, figuram um expressivo número de adultos e até alguns já idosos. Como os contatos na rede nesses casos são mais ralos, é preciso mais tempo e mais empenho para que ela consista e devolva ao sujeito a ideia que alguém o escuta, lhe leva a sério, se preocupa com ele. Esse raciocínio deve ser relativizado na adolescência, pois sua tarefa é encontrar sua turma: necessita-se como nunca de seus pares, é natural que vá passar mais tempo conectado do que os adultos. Para o bem e para o mal é mais fácil achar sua tribo através das redes sociais e, por exemplo, certos adolescente muito peculiares, tem uma chance a mais de encontrar outros com sua mesma sensibilidade.
O que sim pode ser falso nas redes sociais são as informações, mas isso para quem trocou o jornalismo pelos posts de pessoas afinadas a uma forma única de pensar. Vivemos em bolhas, acabamos convivendo mais com gente com as mesmas afinidades, mesma origem e classe social, que portanto pensa de uma forma similar. Esse fenômeno agrava-se com o auxílio dos algoritmos programados para isso. É a inteligência artificial que domina as redes, programada por empresas que têm interesse nesse tipo de comportamento. Nas redes sociais repetimos esse comportamento de grupo fechado. O fenômeno novo é a troca de informações que elas permitem, uma espécie de jornalismo sem jornalistas.
Antes, para nos informarmos sobre qualquer coisa dependíamos de jornais, rádios, TVs. Obviamente o controle político da mídia sempre existiu, mas temos alguma capacidade, nem que seja mínima, de questionar algo veiculado através de um meio impessoal como o jornal ou a televisão. Quando uma informação ou posicionamento provém de alguém com quem temos algum laço afetivo, o impacto disso é maior, quer estejamos de acordo ou não. Hoje os amigos facilmente funcionam como editores de textos e notícias uns para os outros, como estamos em uma bolha, o conteúdo fica restrito ao nosso pensamento, às informações que confirmem as crenças que já temos. Sem falar das notícias falsas, dos mitos pseudocientíficos, das teorias da conspiração.
Infelizmente, a sociedade de acesso livre à informação não parece melhor informada que as precedentes. O erro está em pensar o humano como um ser epistemofílico, ansioso por novas descobertas, conhecimento e não como um conservador que sente que novas informações desequilibram seu mundo. As pessoas abertas ao novo, que não se abalam com novidades que afrontam suas crenças, são uma minoria.

Navegando sem bússola

Se há um ponto de vista em que a internet pode ser um problema está em que não existe uma capacidade fácil e automaticamente auto-engendrada para categorizar, decodificar e apropriar-se de conhecimentos e ideias. A massa de informações e o percurso labiríntico por elas não soma, não decanta. Para compreender algo novo, é preciso inserir esse conteúdo em uma lógica pessoal, confrontar premissas e dados. Nascemos com inteligência para desenvolver essas capacidades, mas ela é intermediada pela relação com aqueles que nos inspiram e inquietam. Essa condição de pensamento beneficia-se muito de uma boa capacidade narrativa, a qual por sua vez depende de diálogos, conversas, debates, transmissão envolvente de conhecimentos históricos, compartilhamento de experiências artísticas. Aprender requer uma tutela instigante da curiosidade científica e, acima de tudo, uma escuta mútua e respeitosa entre grandes e pequenos, adolescentes e adultos.
Os pais temem a pornografia, mas há lixos bem piores ao alcance de poucos cliques. Teorias racistas, sexistas, antissemitismo, extremismos religiosos e políticos, apologia do terrorismo, discursos pregando ódio a uns e outros, em linguagem simples e ao alcance do entendimento de qualquer um. Os discursos mais insensatos são sempre banais, economizam a complexidade do mundo e oferecem-se barato para os mais imaturos, inexperiente e ignorantes.
Como dizia Umberto Eco, a internet deu voz a todos e também ao “idiota da aldeia”. Antigamente o público desses simplórios vociferantes restringia-se aos infelizes ouvidos do seus mais próximos, agora podem esbravejar a fúria de sua impotência nesse imenso megafone. O mundo é extraordinariamente complexo, isso é assustador para os jovens que percebem o trabalho que dá entender tudo isso, missão quase impossível. Aplainar o entendimento, através de ideias maniqueístas é muito sedutor, pois trata-se de encaixar tudo em um modo infantil de pensar. O detalhe é que mesmo as crianças facilmente abrem mão de um imaginário tão pouco complexo e, caso sejam estimuladas ao debate, podem chegar a ideias bem mais interessantes do que algumas bastante populares na rede.
Portanto, é melhor não deixar seus filhos e alunos sem certa supervisão, também no que diz respeito ao conhecimento. Como a evolução tecnológica é incessante e muito veloz, acaba ocorrendo uma sistemática inversão de certo tipo de sabedoria, que talvez possamos denominar melhor de habilidade técnica: os mais jovens tendem a ter melhor domínio dos dispositivos digitais do que seus mais velhos, passam as gerações e essa inversão tem persistido. Como as famílias desejam muito ver em seus descendentes sinais de genialidade precoce, a supervalorização dessa pericia técnica acaba sendo mais uma oportunidade.
Confundido essa habilidade com conhecimento, cultiva-se a fantasia de que as crianças e adolescentes atuais sabem, ou podem saber tudo, por ter tantos recursos de acessar todo tipo de fonte. Porém, qualquer um que já tenha feito uma busca na internet sabe que trata-se de uma arte, quanto mais se sabe sobre algo, quanto mais premissas de conhecimento e capacidade de abstração se tiver, melhores e menos banais ou suspeitas informações se encontrará. A internet não substitui os professores, no sentido de quem os oriente nesse mar de informação que aparenta possuir o mesmo valor. Uma das características da estrutura psicótica é o não ordenamento hierárquico dos saberes. Como se todas as teorias valessem a mesma coisa e estivessem em um mesmo plano. A navegação por essa vasta oferta de conhecimento sem uma bússola, representada por um interlocutor atencioso e melhor qualificado, leva-nos a riscos similares a essa patologia. Não surpreende nesse caso, que se difundam ideias descosturadas, delirantes, ou francamente paranoicas.
O escritor argentino Jorge Luis Borges nos falou do fascínio e terror que a oferta de um saber sem bordas pode causar. Seu conto O Livro de Areia apresenta um objeto que é como a internet avat la lettre. Trata-se de um livro mágico, que como a areia não tem começo nem fim: seu número de páginas é infinito, nenhuma é a primeira nem a última, nunca se consegue abrir na mesma página, pois estaremos fadados a jamais reencontrá-la. Aberto ao acaso, levava o leitor para um labirinto sem fim, do qual o personagem do conto tornou-se prisioneiro, a ponto de deixar de sair de casa e de dormir, por sentir-se incapaz de abandonar suas páginas. Horrorizado, considerou-o monstruoso e o deixou perdido entre as estantes da Biblioteca Nacional. Não podemos livrar-nos da internet, portanto, é melhor utilizar bússolas para enfrentar essa deriva.

Espelho, espelho meu

Se tivéssemos segurança a respeito do que parecemos, não seria necessária a presença de espelhos. A fotografia, sob a forma do auto retrato, vulgarizado como selfie, elevou os espelhos à máxima potência. Quando uma avó pediu à neta que fizesse uma selfie dela, querendo que esta a fotografasse com seu celular, causou uma gargalhada na jovem. Isso mostra o caráter geracional dessa mania. A senhora não compreendia a ideia de fotografar a si mesmo, pois para ela o retrato ainda simbolizava o olhar de outro sobre si.
Ao verificar constantemente nossa imagem nos espelhos o objetivo é indagar como somos vistos. Mas não se trata apenas de investigar, tentamos controlar essa visão ao editá-la através da máscara facial que se arma automaticamente quando nos olhamos, assim como através dos recursos digitais disponíveis. Maquiagem, caretas, detalhes, assim como a busca do “melhor ângulo de si” para colocar-se estrategicamente frente ao olhar alheio, são expedientes usados por quase todos.
Apenas as crianças não perdem tempo frente aos espelhos, pois sua imagem não lhes causa inquietudes. Para elas, pelo menos entre aquelas que sentem-se asseguradas no amor dos seus adultos, o olhar destes é suficiente para que não temam desaparecer caso não haja ninguém certificando sua existência. Ao crescer, perdemos a morada no olhar da nossa mãe, dos familiares que pareciam contemplar somente a nós. O problema é que em vez de independizar-nos, tornamo-nos carentes dessa acolhida.
O auto retrato será tanto mais ativo e insistente quanto maior for a insegurança a respeito da existência e permanência da nossa imagem. A credibilidade da auto imagem, por sua vez, depende da suposição de olhares interessados e que nos sejam amorosamente destinados. Não queremos dizer que os antigos seriam mais seguros de si do que os contemporâneos, talvez não tivessem o recurso de registrar-se ao alcance da mão. Para eles cabia unicamente ao espelho acolher a insegurança que passamos a ter depois da infância, a respeito da integridade da nossa imagem. Hoje tentamos domínio absoluto do registro dela, a espontaneidade é a grande vítima disso, pois mais do que viver, é preciso retratar e, principalmente, retratar-se na cena.
A obsessão com o próprio rosto, ou corpo quando ele é motivo de orgulho, só cede espaço ao retrato dos filhos, que atualmente substitui o olhar familiar. Para os pais contemporâneos não basta ver, querem registrar e mandar imediatamente para os supostos interessados. Cada gracinha da criança ou lugar ao qual um jovem ou adulto chegam, é imediatamente socializado com uma assembleia de participantes.
Uma criança pequena ocupada em brincar em uma pracinha, por exemplo, precisará interromper o tempo todo suas atividades para posar para essas fotos, o escorregador já inclui uma paradinha no topo para o registro familiar. Os eventos de todas as idades já incluem cenários, maquiagens e adereços, assim como profissionais para auxiliar os convidados a preparar essas imagens. Os convidados já não se arrumam para aproveitar a festa, mas sim para fazer retratos, que podem acabar substituindo a festa propriamente dita.
Retratar-se tornou-se uma forma insistente de congelar a vida, produzindo imagens que a interrompem e impedem de entregar-se à sua fruição. O olhar, tanto o próprio quanto alheio, deixa de ser espontâneo, não há com o que surpreender-se, as descobertas são limitadas quando a entrega à vivência encontra-se entrecortada por paradas para registro. A fotografia é uma forma artística de olhar, mas pode tornar-se a suspensão de qualquer olhar genuíno original, pois a arte pressupõe entrega e surpresa.
Consultar o espelho por horas ou retratar-se compulsivamente é próprio de momentos em que estamos mais inseguros ou precisando compreender, constituir ou reafirmar nossa imagem. Por isso a selfie é fenômeno epidêmico na adolescência, quando se está fabricando uma imagem de si, para apropriar-se dela e usá-la por aí. Tenta-se que ela seja tão autêntica como a assinatura pessoal que valida um documento. Aliás, mediante a difusão da cultura digital, cada vez mais será a própria face a assinatura requerida para validar nosso acesso ou a autenticidade de qualquer ato. O rosto, agora uma espécie de documento de identidade, precisa ter uma espécie de constância, representação impecável e imutável do seu proprietário.
Como então envelhecer, considerando que a passagem do tempo deixa marcas, modificando esse documento visual? Por isso, o recurso de congelar a própria face através de substâncias que paralisam a musculatura está cada vez mais difundido, de tal modo que uma imagem editada da nossa versão juvenil se eternize. O problema é que a dita imagem juvenil, que todos os adultos tentam tornar sua para sempre, não é a que se tem na adolescência: nessa época aparecem os traços mais marcantes como os volumes do nariz, do cabelo, enfim, diferente dos traços infantis que são mais suaves.
Embora a imagem adolescente ainda seja delicada em relação à caricatura de nós mesmos em que vamos nos tornando e que chega ao ápice na velhice, há outras marcas, próprias da ebulição hormonal, que maculam a almejada perfeição. Ao olhar-se no espelho, antes de editar-se com maquiagem ou manipulação digital da imagem, o adolescente só terá olhos para as espinhas, a barba rala e irregular, a oleosidade da pele, a imperfeição do nariz e o desalinho dos cabelos. As selfies corrigem com sua persistência essas imperdoáveis falhas. É uma pena que para produzi-las seja requerido tanto empenho que muitas vezes torne-se difícil estar realmente em um lugar ou situação. Viver, tende nesses casos a ser substituído por registrar para olhar depois. É um tempo estranho esse, em que o presente é invadido por um hipotético futuro ideal.

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