Ciganos Letrados

Sobre a identidade judaica

Quando pequena, tinha muito medo de ciganas. Confesso que meu coração ainda acelera quando uma se aproxima para me oferecer a leitura da mão. São velhas senhoras, com grandes saias, só isso. Mas minha avó me dizia que elas roubam crianças. Grave preconceito de uma senhora húngara, já minha mãe tinha uma visão mais romântica dos ciganos violinistas e dançarinos. Levei um tempo para entender o terror e fascínio que me provocavam essas personagens: elas são representantes do meu judaísmo mal elaborado.

Judeus, como os ciganos, não têm paradeiro certo (agora ao menos existe Israel, criado para ser nosso refúgio). Todas as vezes em que tentamos ser assimilados ou influenciar a cultura local de forma evidente, fomos eliminados (vide Espanha, Polônia, Alemanha, Hungria). Precisamos ser sorrateiros, sutis, usar táticas de guerrilha para sobreviver e ser escutados. Porém, na longa história da diáspora, reafirma-se o apego ao que nos une e identifica: a palavra sagrada. Povo de leitura da Torá, de debates intermináveis sobre o significado desta ou daquela frase, gente que se reúne para ler e interpretar, somos ciganos letrados. Se é que fomos eleitos para alguma coisa, além de para ser perseguidos, é para ser guardiões do texto sagrado, o que nos tornou naturalmente ligados à palavra escrita.

Meu judaísmo, então, tinha um Dr. Jeckil e um Mr. Hide. O primeiro era minha paixão pela escrita, o segundo era o pânico das ciganas. Na infância vivi entre gente tatuada e silenciosa, pulsos numerados, cifras que diziam tanto, marcadas em pele de gente que foi tratada como gado de abate, mas que não falavam sobre isso. Meu pai, cujos pai e irmão morreram nos campos, passou a vida como um sobrevivente culpado pela sua condição, circundando esse tema. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, não sabia o que fazer com minha identidade judaica. Chegada ao Brasil aos seis anos, aqui cresci longe da comunidade, nunca morei no Bom Fim nem estudei no Israelita, nunca fui a Israel e na maior parte dos lugares que freqüentei eu era a única judia. Mas o que se cala gera frutos na descendência, como bem explica a Dra. Ana Rosa Trachtenberg.

No mês de abril, parte de mim se uniu a milhares do jovens do mundo todo, reunidos para evitar que o holocausto seja esquecido e refletir sobre seu significado. A Júlia, minha caçula, foi à Polônia, no programa “Marcha da Vida”, passará o dia Iom HaShoá em Aushwitz-Birkenau, onde morreram os seres queridos de seu avô. Como se vê, há belas coisas que as novas gerações podem fazer com o silêncio e a ambivalência dos seus mais velhos: encarar os conflitos, obrigando-os a fazer o mesmo.

Graças à Júlia, gosto de pensar que a identidade judaica é fonte de um orgulho, que, apesar da minha confusão mental, consegui transmitir: o de sermos, pela marginalidade imposta somada à tradição intelectual, um povo de livre-pensadores. Mas também é origem de muitos medos: o de ser um eterno expatriado, como os ciganos, nossos companheiros de suplício nos campos, que é vivido como um eterno potencial de rejeição.

Os judeus já foram considerados assassinos de crianças, como minha avó dizia das ciganas, também foram responsabilizados por inúmeras misérias da humanidade, eliminar-nos sempre foi um artifício de purificação para outros povos. Povo-câncer, somos realmente metastáticos em nossa influência intelectual. A Alemanha nazista varreu junto conosco boa parte da sua vida intelectual. Acredito que nunca se recuperou da perda dos tantos escritores, cientistas, pensadores, artistas e políticos judeus e os que nos acompanharam no infortúnio, mesmo sem serem judeus. Muitos desses foram personagens do crescimento dos Estados Unidos, de sua pujança econômica e ideológica nas décadas que se seguiram à guerra. Triste para uma Europa que se afastou do brilhante destino de farol da humanidade que vinha cumprindo até então. Pelo jeito, somos móveis, porém não descartáveis, eliminar-nos tem seu preço, porque em nossas tendas guardamos livros, idéias, arte e utopias.

Publicado na Revista Wizo RS 2009

30/11/09 |
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