Os caça fantasmas

Sobre o trabalho com pais na clínica psicanalítica infantil

Todo analista de crianças tem que ser meio abilolado. Obrigado a sentar-se no chão, conhecer os últimos lançamentos em games, bater figurinha, vibrar com dominó, jogar bola com almofadas, ir ter com orientadoras educacionais quando dá briga na escola ou quando o boletim está “no vermelho”, e, como se tudo iso não bastasse, lidar com os pais do seu pequeno paciente. Apesar de todas as dificuldades inerentes às outras atividades acima descritas, incrivelmente é o último ítem que parece levá-lo à loucura.

Porque?  Nos ocuparemos das dificuldades deste trato simultâneo com a criança e seus pais. Indagaremos que posição é esta da infância que faz com que não gostemos de conviver nem um pouco com o trabalho parental de constituir um sujeito. Talvez queiramos fingir que tudo isto é coisa do passado e os pais não passam de mortos-enterrados. Quais caça fantasmas, tentamos nos livrar daqueles que insistem em trazer a lembrança dos pais da nossa infância, mas trazidos pelos pais dos pacientes crianças, eles insistem em nos assombrar…

Para dar conta desta dificuldades peço ao leitor que tenha a gentileza de se deixar levar numa pequena viagem, viagem no tempo, como o é atender crianças, e que me siga com atenção flutuante, deixando com que as peças que a história da psicanálise foi espalhando se precipitem em uma figura capaz de brindar pelo menos uma ilusão de clareza.

Sandor Ferenczi conhecido em seu tempo como o “enfant terrible” dos discípulos diretos e leais a Freud, fez juz à condição que o título lhe outorgava, deixando algumas pulgas a roer as orelhas de seus contemporâneos no relativo à técnica. Ao propor as “análises infantis com adultos”(1), possibilitando a pacientes adultos a reedição na transferência de vivências infantis, questionava algumas estereotipias que engessavam a prática analítica de então. Ele não só fez, como descreveu  algumas loucuras que, se não tivemos a coragem ou a necessidade de praticar com adultos, somos indiscutivelmente levados a cometer na clínica com crianças. Assim fazendo, lançou algumas luzes sobre o que havia de resistente nos analistas relativo ao tema do infantil, de que aqui vamos nos beneficiar.

A clínica de Ferenczi buscava levar o paciente até aquele momento do inefável, até aquilo que quando era criança contemplou com olhos atônitos e acolheu em seu corpo e em sua vida por simples paralisia ou desamparo. Reeditando o conceito de trauma, ele o utiliza para definir o impacto da subjetividade adulta sobre a criança. O encontro entre a ternura fortemente erotizada do adulto com a recepção inocente que a criança faz desta, provocaria uma vivência traumática.(2). Trocando em miúdos, esse trauma corresponde ao fato de que a criança é capturada no desejo da mãe, em que se encontra face à sua condição objetal.  O momento em que o sujeito encarnaria o papel que o fantasma parental lhe reserva. Neste instante, como bem ilustra Lacan no seminário IV, a criança encontra a mãe em cujas entranhas psíquicas o ser se fez, desta vez corporificada, um monstro real que a espera com a goela aberta, disposta a devorá-la.

Este momento, que nos acostumamos a considerar apenas mítico, quase teórico, é introduzido por Ferenczi na clínica de adultos. Entre o recordar e o elaborar, a clínica encontra toda a dimensão do repetir. Trata-se de viver este trauma factualmente na transferência com direito a encenações de infantilização extrema do paciente adulto, mudanças de voz e espasmos corporais. Donald Winnicott, muitos anos depois, no trabalho com adultos graves, teve a coragem de cometer e relatar essas criancices(3), conduzindo sessões de longuíssima duração onde o paciente tinha direito a algumas performances regressivas.

Mas, no que consistiria esta vivência traumática? Encontramos um caminho ainda no texto de Ferenczi, nas  múltiplas referências ao que ele denominou de “sonho do neném sábio”: trata-se de uma espécie de sonho típico que consiste em um bebê que não só fala como diz coisas importantes ao sonhador surpreso.

À guisa de explicação, Ferenczi lembra-nos a frase do libertino: “Ah! se eu tivesse aproveitado melhor quando era neném!” (4). A imediata conclusão leva a imaginar o que  faríamos no reino dos seios maternos onde poderíamos saciar todo tipo de prazeres orais, principalmente os menos inocentes… Mas a condição de neném-sábio, joga justamente com o paradoxo de colocar num lugar de sabedoria justamente a alguém cuja ignorância tanto prezamos. Seria a inocência, vulgo infantil da ignorância, que protegeria a criança de pecar.

 Já sabemos que os teóricos da psicanálise infantil, a começar pelo próprio Freud, desconfiaram muito desta inocência: a sexualidade humana não poderia provir do nada, tipo “fiat lux”. Desde os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (5) de 1905, sabemos que a sexualidade é um tortuoso caminho que acompanha o sujeito desde sempre, através do mapa de seu corpo. Porém, a metáfora que este sonho de Ferenczi empresta, é importante para lembrar que o dilema relativo à infância, uma vez estejamos de acordo com as teses freudianas sobre a sexualidade infantil, é sobre o que se pode saber sobre o sexo e não sobre o caráter sexual das vivências. Viver e saber não são parceiros inseparáveis. Ter uma sexualidade não implica em absoluto em sabê-la.

As “Teorias Sexuais Infantis”(6) descritas por  Freud acostumaram o estudioso da psicanálise ao fato de que vai se sabendo aos poucos, à medida das possibilidades cognitivas e das vivências amorosas infantis. Aprendemos com Freud que a criança só entende o que está em consonância com seu momento e ignora ostensivamente o que não é passível de compreensão. As grandes questões da clínica com crianças giraram em torno do problema do saber, tanto em termos do que poderia ser o “insight” de uma criança, quanto em torno de como melhor propiciar seu desenvolvimento no sentido da inteligência, grande meta iluminista dos discípulos que ouviram o apelo de Freud de se ocupar das crianças: viabilizar a sublimação.

A loucura da análise de crianças é a possibilidade de analista e criança viverem o papel do neném sábio, o que seria algo como se Édipo pudesse pensar “Oh, que delícia, na cama com mamãe, afinal foi isto que sempre desejei!”. Com os pequenos pacientes temos a oportunidade de frequentar uma infância acontecendo aqui-agora, faca e  queijo na mão para intervir e mudar o curso da história, dispostos a levantar o véu do recalque no instante mesmo em que este se estende. Estas são as melhores fantasias e intenções de quem quer emprestar à infância sua sabedoria.

Mudar a história…talvez tivessemos podido evitar as grandes catástrofes, Hiroshima nunca teria visto o cogumelo mortífero, se Einsten soubesse…Se o mundo pudesse ter pesado as consequências da guerra, nunca teria havido o holocausto, quem sabe? Poderíamos corrigir o defeito que fez do espetáculo do Chalenger uma catástrofe, a bala mortífera poderia ter sido desviada e Kennedy, Lennon, Luther King e Rabin estariam vivos. Todas estas correções e muitas outras talvez tivessem colocado nosso caótico mundo na rota certa. Delírio? Sim. Mas quero aqui provar que é algo do gênero que possibilita e ao mesmo tempo neurotiza a psicanálise com crianças.

O que teria acontecido se papai não tivesse me dado aquela surra? E se mamãe não tivesse dito aquilo? E se eles não tivessem tido tantos filhos? E se eu não tivesse visto aquilo, eu poderia ter sido poupado…E se minha história fosse diferente? E se quando eramos pequenos, junto com mamãe e papai, tivessemos frequentado um analista e eles pudessem conduzir a vida melhor, seríamos menos neuróticos?

Analisar uma criança implica justamente em trabalhar nessa dimensão temporal futurística, marcada pelo ponto de vista da “prevenção” onde uma criança é trazida com os olhos postos no que irá se tornar. A bem da verdade, o sofrimento presente do pequeno, que sabemos que pode ser bem grande importa ao adulto tão pouco quanto o tempo presente do seu filho. O sofrimento infantil se expressa pela dimensão do que é capaz de incomodar sua família, mas como o adulto está habituado a passar trabalho com a criança, mesmo assim a traz preocupado com o que isto pode estar significando em termos de prognóstico. Fulano dorme mal, me acorda todas as noites, mas não é isso, eu não me importo, mas porque isso está acontecendo, será que isso vai prejudicar o bom andamento da empreitada? Fulano vai ser alguém nervoso? Será que vai rodar no vestibular ou ficar sem namorada por causa disso?

A criança não incomoda quando ela bem se adecua ao que queremos que ela se torne. Não há pais que não amem seus filhos adormecidos. Aqueles lindos anjos, tendo adormecidas todas suas incomodas agitações, encarnam a morte da infância e o promissor despertar do filho idealizado. O raiar do dia trará a inevitável desilusão, as dúvidas de que alguém tão pequeno possa vir realmente a se tornar grande, aliás, grande não, grandioso. Os pais trazem seus filhos para uma análise pois consideram o que veem indicadores preocupantes, na melhor das hipóteses. Na pior os trazem porque o pequeno diabinho insiste em lhes provar que a roupa de anjo prodígio não é seu número, que aliás ele nem pensa em vesti-la. Faça alguma coisa, doutor, a mercadoria veio estragada, dá para trocar, consertar? Eles vem então tentar que a história dessa criança seja escrita de forma a ter um final feliz, moldado óbviamente pelo ideal parental.

Não se trata de uma maldade de adultos isto de ser difícil conviver com o presente da infância, trata-se de um problema estrutural. A infância alimenta-se desse desejo que ejeta os pequenos seres sempre um passo a mais. A criança que não contar com este molde do ideal para nortear seus caminhos, desvios e atalhos encontrará o vazio do autismo ou, se conseguir, o desesperado ato transgressivo de roubar algo de alguém que não pode lhe brindar seus votos, quer seja através de uma filiação delirante ou propriamente pelo furto de um objeto que represente o  pai. Por isso é completamente normal que recebamos a missão de adequar um sujeito ao ideal dos pais. São os casos de bom prognóstico.

Mas em que posição o analista de crianças fica frente a esta polifonia de tempos verbais? Trata-se da maluquice de intervir em algo que “será o passado de alguém”. É possível intervir na história desta criança para melhorar seu destino? E se o ideal parental incluir um voto mortífero, ou idiotizante, ou se simplesmente quisermos acreditar que o sujeito possa buscar uma versão disto? Este pedido não contém algo parecido com a fantasia do filme “O Exterminador do Futuro” onde alguém viria do futuro para garantir o sucesso de um percurso num passado que é o presente de uma criança: que o tal menino sobreviveria para cumprir o papel que a história lhe reservou?

Diz-se à exaustão que Freud já definira as três profissões impossíveis: educar, governar e analizar. Repetimos isto tanto que já não nos diz nada. Este texto pretende refrescar a memória relativo às impossibilidades de educar e analizar que marcam um improvável encontro na psicanálise de crianças, gerando os sintomas desta prática. Trata-se de um mal estar comum aos que nos dedicamos ao tema e que faz desta clínica algo que sempre temos a fantasia de abandonar. É um lugar assombrado, cheio de histórias de analistas de crianças que se suicidaram, que muitos deixam para trás com o regozijo com que damos as costas à nossa infância e adolescência.

 Mas não insistirei mais sobre esta “tensão temporal que afeta o sujeito infantil” pois para isso dispomos do texto-síntese de Alfredo Jerusalisky, denominado “A Infância Sem Fim”(7), encontrável no número 6 desta revista. Como me referia antes, minha intensão aqui é trabalhar uma nuance desta clínica que é a missão impossível de conviver com os pais dos pacientes mirins. Acrescentaremos a esta abordagem alguns dos problemas vividos pelos analistas de crianças fundadores desta aventura: Melanie Klein, a mãe analista e Anna Freud, a eterna filha.

Se perguntarmos a qualquer praticante deste nosso ofício quais os senões ao atendimento de crianças, obteremos a infalível resposta de que as crianças são mesmo muito cansativas, mas os seus pais são intratáveis. Estes são nosso calcanhar de Aquiles. Sabedores que somos de que um filho é  resultante de um cálculo impossível, ou seja, trocando em miúdos psicanalíticos, efeito imprevisível de uma versão particular do inconsciente parental, ficamos em posição mais que delicada frente a esses personagens reais, que são os pais, que insistem em passear seus corpos, incômodas existências e problemas práticos em nossos consultórios. Seus problemas cotidianos, de alimentação, sono e disciplina atrapalham quando estamos verdadeiramente interessados em saber algo que eles só dizem por descuido. Os pais entram no consultório para contaminar a pureza de nossa escuta com esta humanidade gritante, reencarnado o outrora ascéptico trabalho com o significante. Com adultos podemos trabalhar, se quisermos, num ambiente calmo e silencioso de hospital, com as crianças somos levados às dependências do mercado público.

O convívio com a infância vem para nos lembrar que somos feitos de papinhas, fezes e cotonete na orelha, que papai e mamãe existem, falam e exalam o cheiro de seus lençóis, que o nosso fantasma originário passeia de pijama e roupa de baixo, numa promiscuidade de intimidades que o  sujeito só reencontrará com seu amante e com os próprios filhos, já que em ambos casos de amor se trata.

Retomando o gancho emprestado por Ferenczi, continuamos em sua esteira mais um pouco, antes de que nos deslizemos para o seu divã, ao encontro de sua paciente Melanie Klein. Ainda nos textos do húngaro, encontramos uma pérola para o assunto que aqui nos diverte. Trata-se de um texto de 1933 intitulado “Confusão de Línguas entre os Adultos e as Crianças”. Aqui, tentando articular algo sobre o que ele considera ser a “origem exógena da formação do caráter e da neurose” (constituição do sujeito no Outro, diríamos), Ferenczi descreve o caráter intrinsecamente traumático do encontro amoroso da criança e do adulto, entre “o que há de terno no erotismo infantil e o que há de apaixonado no erotismo adulto”. Ele pressupõe a existência de um estádio de amor objetal passivo, no qual o adulto toma a criança como objeto de satisfação e esta responde introjetando-o. A violação, o trauma, a violência que ele detecta advém da condição objetal que ele percebe no infantil, no assujeitamento ao que chamaríamos de fantasma da mãe.

Temos aqui um momento magnífico da psicanálise: pela primeira vez alguém faz a leitura das consequências psíquicas do fato da criança dever seu lugar ao desejo de alguém, ou seja, da equação da feminilidade, que Freud havia traçado em seu texto sobre a “Feminilidade”(8), vista aqui a partir do lugar da criança, . Se graças ao amor de um homem uma mulher recebe este bebê-presente que a faliciza, resulta que o amor dedicado a esta coisinha (de fazer pipi, diria Hans) será o de tomá-lo como objeto complementário de seu corpo, partícipe de seu fantasma sexual, objeto fetiche que estende seu véu ocultando e saciando a eterna sede de sentido do voraz continente negro.

 A mulher, essa safada, como as promíscuas babás que o horrorizado Freud denunciou na virada do século em sua teoria do trauma, usa a criança para saciar suas incompletudes enquanto esta, inocente, não tem a “sabedoria de aproveitar”. A criança , por sua vez, toma, arranca seu ser de dentro desta significação. O nascimento biológico vai dando lugar ao demorado parto psíquico, o bebê  vai apropriando-se daquela que o continha. Mas não a toma em pessoa, vai torná-la uma imago, produzindo a morte da coisa através do surgimento da representação. A bruxa devoradora é transformada em tigre de papel, algo que a criança agora pode usar para fins próprios: a representação primeiro parcial (seio) e depois total da mãe.

No texto “O Sentido da Realidade e seus Estágios” escrito em 1913 (9) por Ferenczi, acompanhamos o nascimento e desenvolvimento da possibilidade de saber. Esta decorre de que desde o interior do corpo materno vá se desgarrando e criando o corpo da criança, num processo de perdas sucessivas. A cada desencontro, a criança aprende que há alguma variável que tem que levar em conta para ter a mãe ali onde ela pode lhe brindar a satisfação desejada. A onipotência do bebê dá lugar ao senso da realidade, que passa por saber de que atitudes e presenças depende a satisfação. A inteligência humana esteve e está primeiramente ao serviço da sobrevivência. Quanto menos ficamos postrados à espera dos céus, mais providências podemos tomar para nos proteger. Assim a psicanálise sempre viu, com o iluminismo, a religião na contramão do progresso e do bem estar. O bebê convoca a solução dos problemas com vagidos lançados ao léo da mesma forma como rezamos pela solução de um problema que quiçá poderíamos, senão resolver, talvez minorar. Para Ferenczi e Melanie Klein, a religiosidade na pedagogia incrementa a onipotência e o pensamento mágico, ambos sentimentos contraditórios com a aquisição de saber (10).

Vemos aqui novamente que o ideal de saber de que se serve o psicanalista, pressupõe que o sujeito liberdade subjetiva e suporta muito mal que a dependência, por isso os pais estão bem colocados quando são imagos à disposição das produções infantis e não seres humanos subjugadores, lembrando nossa condição de trêmulos fiéis prostrados frente ao altar do leito parental.               

Cada ser humano precisa para bem de se apossar de suas plenas faculdades mentais abandonar a morada do corpo da mãe, perdê-la, tornando-se sábio de como se faz para reencontrá-la. Assim, quando o psicanalista oferece seu “saber de adulto” para livrar a criança do assujeitamento ao inconsciente dos pais, não faz mais do que querer lhes acelerar a morte da coisa-mãe, para que apareça a representação da mãe, propiciar o saber que nasce da perda. Então, o que ele oferece à criança é a separação. Veja (diz o analista ao pequeno crente em pânico, disposto a mil oferendas para conter a ira dos deuses) afinal podemos olhar o Olimpo desde fora, eles não são assim tão poderosos, podemos nos interessar por suas histórias, por seus caprichos e suas fraquezas, podemos brincar de ser um deles, podemos enfim, saber deles, de suas excentricidades, pois não somos parte de seu corpo nem eles do nosso, veja só…

No entanto é bom que sempre lembremos que esta saída, este assassinato dos deuses, só pode ocorrer  a partir do fato já dado de que é no Outro que o sujeito surge, que é no corpo da mãe que colhe suas primeiras representações, trocando em miúdos, só há boca porque há seio, só há corpo porque há toque, só ha equilíbrio porque há olhar.

É aqui que encontramos Melanie Klein. Recapitulando, lembremos que falávamos do assujeitamento da criança ao desejo de um adulto que a violenta com seu fantasma sexual. Temos que a criança se entrega, torna-se cúmplice deste jogo e dali retira o que Ferenczi chamaria de “identificação com o agressor” e klein de “primeiras identificações”(11). Já nas mãos da analista mulher, o que era para Ferenczi um dilema moral, transforma-se numa sinuosa trama de desejo.

Klein faz entrar aqui já a figura do desejo da criança pela mãe e o seu consequente recalque. Se a existência da boca veio do prazer de chupar o mamilo, o recalque vem jogar um véu sobre isto.Para ela, a inocência infantil simplesmente não existe. Na “geografia do corpo materno” (12) o pequeno humano ganha cidadania ao transformar identificações (mamilo-boca) em símbolos. Assim, para esta autora, uma inibição na aquisição da fala, por exemplo,  pode decorrer do recalque de um desejo oral do bebê, pois o falar passa a simbolizar o antigo prazer e o movimento da língua entre os lábios recria a antiga cópula boca-mamilo..O simbolismo, onde mais uma vez faço-vos observar a perda da coisa-mãe, inaugura a busca eterna.

A concretude do corpo materno perde-se, quando sua existência precisa tornar-se uma representação psíquica visando desconectar ou obscurecer a conexão que a amorosa boca do filho pôs sobre o seio. Dali em diante a boca que apenas sugava, explora os objetos, diverte-se com dedos e pés e por fim, fala. É um eterno deslocamento atrás da perda irrecuperável. Nascido na onipotência de possuir e ser possuido pelo Outro, tudo que o ser humano faça, desde a mais elementar preensão até a deambulação e a fala, ocorre sob os auspícios da sublimação primária. Interessante observar que a partir da teoria Kleiniana, se nos movemos com o corpo que o amor de mamãe nos deu, a direção em que o fazemos é demarcada pelo brincar, considerada a primeira das sublimações secundárias, primeira síntese das sublimações primárias como a marcha e a fala por exemplo.

Melanie Klein foi ainda mais longe, colocando em jogo uma belísima representação do que seria um fantasma sexual na infância. Sabemos que o conceito de mãe é uma metáfora de grande vastidão para esta autora, o corpo da mãe kleiniana é um conteiner que porta o pênis do pai, os bebês que ele pode lhe brindar e outras maravilhas. Mas não contente com esta imaginarização do que seria a função materna, diferente da pessoa da mãe, a sra. Klein propôs o termo de “figuras parentais combinadas” ou “imagem unificada dos pais”(13), o que dá no mesmo.  Aqui temos exatamente a representação imaginária dos pais. Estes são os pais que interessam ao psicanalista. São os pais digeridos pelo insconsciente do filho, equacionando em nome de que gozo este filho foi gerado, testemunha de uma potência paterna e uma saciedade materna. Para melhor enfronhar-se neste tema leia-se “Hipótese sobre o Fantasma” de Contardo Calligaris (14).

Klein e Ferenczi destrincharam o jogo do desejo que Freud já havia proposto, desde o romance de Édipo e Jocasta. A novidade trazida por estes é Complexo de Édipo passado pelo crivo da subjetividade infantil. Originando seu trabalho a partir do discurso da criança, levando em conta as premissas que desenvolvemos acima, o psicanalista de crianças por uma ou outra via, está sempre a denunciar que os pais reais não existem para a psicanálise de crianças.

Para Anna Freud, a condição infantil era impossibilitadora de uma análise, pois como pensar numa neurose de transferência, que reeditaria velhas e sintomáticas questões, se “a velha edição ainda não se esgotou” (15)? Assim, aquela que foi sempre acusada de ser eterna filha, de não ter se analisado por ter feito este percurso com o próprio pai, vê uma contradição em termos entre infância e recalque. O recalque dos pais, condição sine qua non da psicanálise, está necessáriamente acompanhado do recalque da infância. Somente o recalque daria às vivências a qualidade de recordações, aos desajustes da criança a qualidade de lapsos e aos pais a de sepultos, como bem seu pai já havia escrito no texto “A Dissolução do Complexo de Édipo”(16). Aliás, em conformidade com os problemas com que aqui me debato, a tradução do título deste texto foi sugerida como “O Sepultamento do Complexo de Édipo”, lembrando que uma filiação não se dissolve, se inconcientiza.

Grande apaixonada pelo tema da efetividade moral de uma paternidade, Anna Freud foi cultuadora das benesses da internalização de um ideal ético. Foi isto que a levou a mais de uma intervenção dita pedagógica visando justamente o estabelecimento desta condição psíquica: a transformação dos pais reais em herança moral.

A sra. Klein reage aos senões da srta.Freud à psicanálise com crianças, lembrando que não haveria problemas relativo à neurose de transferência pois mesmo a relação com os pais reais já é transferencial. Os pais de carne e osso não passariam de “protótipos reais dos objetos introjetados” (17) e as relações do filho com seus pais um exercício de comparação dos severos pais internos com seus inspiradores animados. Assim pais e analista se igualam frente ao inconsciente da criança. Igualam-se em ser a corporificação de uma elaboração infantil.

Lembremos do Homem dos Lobos (18) e do desgaste sofrido por Freud em chegar a saber afinal o que foi que ele de fato viu. Isto hoje parece-nos absurdo, pois de alguma forma  já estamos habituados a pensar desde o raciocínio lançado por Melanie Klein, que os pais são internos ou, com Anna Freud, que devem ser internos.

Klein acredita que os pais reais, ou o analista, podem apaziguar a fúria inclemente com que o superego da criança, leia-se pais internos, chicoteia a vida do principiante. Anna Freud já prefere priorizar o analista aos pais, sendo muito simpática a que este os substitua na tarefa de consolidação psíquica, por isso trabalhou tão bem com crianças orfãs ou distantes de seus pais. Não é a toa que nenhum dos primeiros analistas de crianças trabalhava com os pais.

Uns e outros, que seja pelo horror ao trauma relatado por Ferenczi ou pelos argumentos acima, preferiram trabalhar com crianças que eram filhos de outros analistas, que se mantinham respeitosamente circuspectos relativo às analises de seus rebentos, ou com adultos. Nestes casos os pais com que lidamos são ficionais, plásticos ao exercício da retranscrição da história do filho. Os pais reais não são nada plásticos e atuam seus mais arraigados sintomas direto no dia a dia do filho.

Foi isto que levou a outro grande tema dos psicanalistas de crianças, presente em Maud Mannoni, que é o do segredo, o da criança como portadora de um segredo familiar, bode expiatório em cujo sintoma dramatiza o que decanta do inconsciente parental.

Esta é uma grande virada, pois remete à necessidade de buscar algo no discurso parental para bem de aliviar a criança da pesada missão. É preciso dizer que Mannoni exagera um pouco na dose, esquecendo-se dos ensinamentos Kleinianos que estabeleceram para sempre o direito da criança de fazer sua versão pessoal da história. Porém, temos aqui novamente uma crença nos pais reais.

O fato é que eles ainda hoje incomodam. Suas presenças são tão insuportáveis para o analista de crianças como o é a de seus pais para o adolescente. Mas qual o parentesco do analista de crianças com um beligerante jovem que confunde prepotência com sabedoria  e evitação com liberdade? A chave da comparação está na necessidade peremptória de assassinar os pais da infância. Na verdade, uma análise de crianças dá-se num espaço muito próximo do adolescer, num espaço onde os pais devem advir ficcionais. O analista de crianças odeia os pais que se recusam a morrer e com este ódio mantém vivo seu amor por eles, pois sabemos que o fim do amor não é o ódio, é a indiferença. Odiar é amar às avessas. Se recusarmos a presença dos pais dos pacientes crianças eles nos assombrarão como fantasmas e só teremos direito ao medo.

Cabe agora a piada da mãe judia que vai para o céu e envolve-se em uma contenda com outras mães a respeito de qual seria a mais amada pelo filho e a ganha dizendo que seu filho vai ao psicanalista e gasta milhões para falar sabem de quem? Dela. A psicanálise impede o esquecimento dos pais, devolvendo a muitos a possibilidade de fazer algo com sua filiação. Este trabalho debate-se permanentemente entre a construção e a derrocada dos ideais parentais. Os analistas sabem quão complicada é a transmissão e apavora a incerteza da empreitada. Na verdade não sabemos muito bem onde vai incidir o inconsciente parental, por isso épocas optamos por apagar sua força, épocas optamos por apresentá-la de forma caricatural.

Não somos dos melhores resolvidos relativo a este tema, ficamos como o filho da mãe judia a remoer diáriamente a nossa filiação e a alheia, e ainda chamamos isto de trabalho. Por isto não sabemos o que fazer com os pais. Nesse sentido talvez a posição de avô, ocupada por Freud relativo à Hans (19)seja uma boa pista. Freud, em suas intervenções, deu ao pai do pequeno a dimensão de legitimidade que este buscava. Por que não?

O caminho de viabilidade deste trabalho com os pais, é uma história de três gerações, onde o pai e a mãe são tomados pelo analista do filho em uma posição misto de analítica com paternal. Mas o analista é um pai já avô,que tem uma perpectiva histórica, uma noção da passagem dos tempos, da sucessão das gerações que só um velho tem. Somente desta forma conseguiremos dar uma perspectiva histórica do que está acontecendo aos pais das crianças que atendemos. “Isto que hoje incomoda tem a ver com o filho que tu fostes, com a forma como vocês se casaram, com o momento em que esta criança nasceu, com a relação atual com os avós desta, ou com a morte de algum deles, com o irmão que fostes, com aquela depressão que te acometeu em determinada época, com um desencontro por ocasião do parto, com uma frase do médico, etc…” Talvez a permissividade que temos em nossos consultórios, permitindo que a criança ponha todos os elementos do ambiente e de nosso corpo em jogo para fins de sua elaboração, nossa disponibilidade para brincar, também lembre a do avô, que permite que o neto brinque com seus bibelôs e reminiscências. Talvez este seja um caminho possível para este trabalho: amar os pais dos pequenos pacientes como se fossem nossos filhos e isto permitiria com que esta clínica deixe de ser adolescente, e portanto abandonada e recalcada, para ser algo que possa atingir algum tipo de maturidade.

BIBLIOGRAFIA

1) FERENCZI, Sàndor. “Análise de Crianças com Adultos” in Escritos Psicanalíticos (1909-1933). Rio de Janeiro. Timbre Taurus.

2) FERENCZI, Sàndor. “Confusão de línguas entre os adultos e crianças” idem ant.

3) WINNICOTT, D.W. “Nada no centro”, “A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise” e outros in Explorações Psicanalíticas.Porto Alegre, Artes Médicas,1994.

4) FERENCZI, Sàndor. “O sonho do neném sábio” in Escritos Psicanalíticos (1909-!933). Rio de Janeiro. Timbre Taurus.

5) FREUD, Sigmund. “Tres Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume VII. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.

6)FREUD, Sigmund. “Sobre as Teorias Sexuais das Crianças” e “O Esclarecimento Sexual das Crianças”  in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume IX. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.

7)JERUSALINSKY, Alfredo. “A Infância sem Fim” in Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 06.Porto Alegre, 1996.

8)FREUD, Sigmund. “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”  in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XXII. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990

9) FERENCZI, Sàndor. “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estádios” idem ant.

10) PETOT, Jean-Michel. “Melanie Klein I”, capítulo 1. São Paulo. Editora Perspectiva.1987.

11) ver ref 2 e PETOT, Jean-Michel. “Melanie Klein I”, capítulo 2. idem ant.

12) KLEIN, Melanie. “Analisis Infantil” in Contribuciones al Psicoanalisis, Obras Completas II. Paidos-Hormé, 1975.

13) SEGAL, Hanna. Introdução à Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975.

14) CALLIGARIS, Contardo. Hipótese sobre o Fantasma”. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, l986.

 15)FREUD, Hanna. “Psicoanalisis del niño” Buenos Aires, Ediciones Imán, 1946.

16) FREUD, Sigmund. “A Dissolução do Complexo de Édipo” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XIX. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.

17) idem ref. 10.

18)FREUD, Sigmund. “História de uma Neurose Infantil” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume XVII. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.

19)FREUD, Sigmund. “Análise de uma Fobia em um menino de Cinco Anos” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume X. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.

 Publicado na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, ano VII – Número 13
01/08/97 |
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