Virando caricaturas
A beleza é associada ao mal traçado esboço do que ainda não somos, enquanto é negada ao retrato detalhista que vamos nos tornando.
As cartilagens nunca param de crescer. Os músculos cedem sob os efeitos da gravidade. Nossa coluna vai adquirindo as torções ao sabor da expressão corporal, os pés incorporam a forma dos sapatos preferidos, as mãos traduzem nosso ofício, enquanto na pele se escreve a história da luz em nossa vida. Com o tempo, tornamo-nos mais estampados, angulosos, pontudos. Assusta um pouco, mas se observarmos melhor, veremos que isso não espera a velhice para acontecer. A transformação da nossa imagem é constante ao longo da vida. Como conseguimos um corpo para chamar de nosso se ele não para de mudar?
A imagem corporal é muito mais do que um retrato congelado no espelho. Ela é a tradução para o corpo daquilo que em termos psíquicos chamamos de “eu”, “self”, “ego”, os quais são nosso jeito de ser, consequente da identidade que tivermos construído. Ao longo da vida, criamos algum tipo de formato próprio, além de que nos movemos utilizando uma ginga particular, assim de longe alguém que nos conhece poderá antecipar que somos nós. Repare, o que nos caracteriza são as marcas do uso! Graças a esses traços típicos, conseguimos ver-nos no espelho todos os dias sem perguntar quem é aquela pessoa.
Por sorte, o nariz não cresce rápido como o do Pinóquio, nem acordamos uma manhã com as orelhas do Dumbo. São milímetros, todo dia um pouco, até irmos virando numa espécie de caricatura de nós mesmos. Os desenhistas que fazem esse tipo de retrato cômico buscam exagerar os traços sobressalentes, como uma espécie de crítica, mas também de caracterização inequívoca do personagem. A idade ao invés de nos fazer perder a autenticidade da imagem, vai acentuando-a.
A beleza está mais associada ao esboço do desenho do que ao retrato detalhista. O traço rápido e inicial do alinhavo da imagem é considerado formoso, enquanto recusamo-nos a ver beleza naquela obra onde o artista deixou-se trabalhar com demora. As pálpebras emolduram os olhos, guardam uma história de olhares, a boca incorpora o hábito de rir, beijar e crispar-se. Tem um jeito em que nossos braços e pernas gostam de ficar, as gordurinhas fazem beiço e as costas esquecem a continência. Mas picaríamos em pedacinhos essa obra se nos fosse presenteada. Preferimos as linhas intactas. Belo equivale ao sem uso, ao contrário do visual expressivo, assim como da postura manhosa que se adquire com a idade.
Para aprender a ser alguém e ter um corpo requer-se tempo. Isso vai na contramão daquilo que consideramos uma imagem impecável: a que tem a falta de contornos, própria dos que ainda não sabem bem quem são. Só posso chegar à conclusão, que o alvo da nossa admiração é um corpo que não testemunha pertencer ao seu dono. Não parece estranho, então, que o chamemos de “objeto”, seja de desejo ou de consumo. Por outro lado, quem aprendeu a ser alguém de corpo e alma irá tornando-se autêntica e corajosamente numa divertida e orgulhosa caricatura. Terá um corpo eloquente, que antes das palavras já conta uma história, cujos olhos já antecipam respostas, cuja boca tem uma tradição de sorrisos. Um corpo usado tem mais gente dentro. Para mim, isso é belo.